[crônica] A MAIS LONGA VIAGEM

Algumas notícias, lidas aleatoriamente em jornais recentes, dizem muito sobre os mistérios da humanidade. Um homem armado entra num edifício da Marinha em Washington e mata 12 pessoas. Um ataque com armas químicas contra uma população civil na Síria deixa mais de mil mortos. E, pela primeira vez na história, um objeto construído por seres humanos atravessou os limites do sistema solar.

O objeto em questão é a sonda Voyager 1, que acaba de chegar ao abismo do espaço interestelar, bela e poética expressão usada pelos cientistas para descrever os limites entre a área do cosmo sob influência de nossa estrela, o Sol, e o espaço infinito por onde essa pequena heroína navegará até os domínios de uma próxima estrela.

Será uma longa viagem. A previsão é que ela só alcance um planeta de outro sistema dentro de 40 mil anos. Lançada pela Nasa a 5 de setembro de 1977,  percorreu até agora 19 mil milhões de quilômetros, e por volta de 2025 perderá a capacidade de enviar informação à Terra. Os dados que ela tem enviado levam 17 horas para chegar a nosso planeta. As últimas fotos que mandou, em 1980, retratavam cenas inimagináveis de Júpiter e Saturno, incluindo as duas luas de Júpiter. Depois os cientistas desligaram sua câmera, para poupar energia, pois ela demonstrava capacidade de ir muito mais longe do que no início se esperava.

O maior especialista na missão Voyager, Edward C. Stone, tem 77 anos e está no projeto desde 1972. Ele não saberá o que acontecerá quando a sonda chegar a outro planeta. Nem eu. E nem vocês, caro leitor, cara leitora. Mas ele acredita num futuro melhor para a humanidade. Eu gostaria muito de lhe perguntar o que ele pensa dos cientistas que criam para a indústria bélica projetos de armas cada vez mais mortais. Ou daqueles que descobriram o mecanismo do gás sarin sobre as células humanas, fazendo dele uma arma terrivelmente mortífera.

Quando pensei na contradição entre os feitos heroicos e nobres dos humanos e seus gestos mais mesquinhos, folheei alguns jornais em busca de feitos dignos de admiração. Mas nossas páginas estão coalhadas de tragédias, de tal forma que não há espaço para mostrar exemplos dessa nossa face quase oculta. 

Tendo a acreditar que o mal nos seduz. Tanto que notícias de acidentes, tragédias, crimes, ainda que muito distantes de nossa realidade imediata, nos atraem mais do que a viagem da Voyager. E não é por ela própria estar distante, pois isto é o que ela tem de mais sublime.

Tento imaginar o que pensarão sobre nós os seres inteligentes que habitarem o distante planeta onde a Voyager pousará dentro de 40 mil anos. Talvez, em futuro tão inimaginável, a Terra nem exista mais, ou tenha sido abandonada, em ruínas, por seres que no futuro precisarão de outro planeta para destruir. Mas quem receber a Voyager terá informações, ainda que falsas e incompletas, sobre o que somos hoje. Ela carrega, por exemplo, em discos analógicos, uma gravação da Quinta Sinfonia de Bethoven, um dos pontos altos da criatividade humana. Terão exemplos de sons da Terra, como trovões, vulcões, vento, chuva, e ouvirão vozes de animais como hienas e elefantes. Também serão saudados em 55 idiomas diferentes.

Só não saberão que os homens, pelo menos os de hoje, são incapazes de viver em paz. Nossa vocação belicosa foi mantida em segredo.  


[Ilustração: sonda Voyager 1 - Nasa]

[crônica] AS ASAS DA PASSARINHA

Bárbara era uma adolescente em 1959. Seus pais, Ruth e Elliot, achavam estranho que a garota gostasse de brincar com bonecas. Donos de uma fábrica de brinquedos, tiveram a luminosa ideia de criar uma boneca adolescente, que combinasse melhor com a filha. Assim nasceu Barbie, obra do designer Jack Ryan e principal produto da Mattel, a fábrica localizada em Nova York.

A bonequinha alastrou-se pelo mundo e pelos armários de crianças e pré-adolescentes, e virou sonho de consumo de meninas que sonham com o universo adulto. Com seios volumosos, cabelos lisos escorridos e corpo longilíneo, bem ao estilo norte-americano, ganhou, ao longo dos anos, um enorme guarda-roupa e até um namorado, sujeitinho bombado e mal-encarado, que as menininhas guardam nas gavetas ao lado da Barbie.

Nascida em 1959, Barbie tornou-se, mais que um brinquedo, um símbolo da mulher produzida e submissa aos modelos de beleza estabelecidos pela mídia. Já tem lá seu meio século de idade, e parece cada vez mais viva na mente de outras adolescentes – incluindo aí moças que já passaram dos vinte ou trinta. A mente feminina é um mistério.

A Barbie é uma espécie de modelo de mulher que vai na contramão da natureza, enchendo-se de plásticos e se esquecendo de que o ser humano é, na verdade, feito de carne, ossos, suores, pelos e cheiros, com todas as suas semelhanças, diferenças, virtudes e defeitos, sinais, anormalidades, biótipos.

É muita pretensão: a indústria da beleza, que enche seus cofres ao vender produtos para a mulher, agora se propõe a fabricar a própria mulher. Na linha de montagem, as barbies estão vivas. Enquanto os corpos vão passando pela esteira, cirurgiões plásticos, depiladores, dermatologistas, cabeleireiros, como operários numa fábrica de automóveis, vão transformando a imperfeita e sedutora mulher de carne e osso numa insossa boneca de plástico.

Cosméticos eliminam os cheiros e ceras eliminam os pelos. Os cabelos, lisos, ondulados ou crespos, adquirem o mesmo aspecto padronizado e artificial. Os corpos são esculpidos pelos cirurgiões, que não são artistas, como o anônimo escultor que fez a Vênus de Milo, uma sedutora mulher de pedra que perdeu os braços. São apenas comerciantes de silicone.

Até meninas adolescentes já entraram nessa onda. O número de adolescentes entre 14 e 18 anos que se submetem a cirurgias plásticas mais do que dobrou nos últimos quatro anos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Foram 91.100 cirurgias em 2011. O Brasil é o segundo país do mundo nesse tipo de intervenção, atrás apenas da pátria da Barbie. A lipoaspiração e o implante de silicone nas mamas são as mais comuns, tanto para adultas quanto para adolescentes.

O dado mais impressionante, no entanto, é que, de acordo com dados da mesma entidade, mais de 9 mil brasileiras se submeteram em 2011, de acordo com os números mais recentes, a cirurgias plásticas de correção da vagina – a chamada labioplastia. O Brasil é campeão no procedimento, com 16% do total praticado no mundo. Estão cortando as asas da passarinha!

E pensar que em meados do século passado as mulheres lutaram tanto para deixar de ser um objeto sexual... Se naquele tempo ser objeto tinha um sentido figurado, agora, em pleno século 21, o sentido se torna cada vez mais literal! 


[Ilustração: batkatcreations.com]

[cinema] UM FRACASSO MONUMENTAL


Plano B: Brasília sem máscaras
O documentário Plano B, de Getsemane Silva, conta a história de um gigantesco fracasso. Ele parte do quase inacreditável caso de censura do filme Contradições de uma cidade nova, vetado pelo próprio patrocinador, e que teve uma única exibição pública. De 1967, quando o filme deveria ter sido lançado, até 2013, quando o documentário de Getsemane será visto pela primeira vez, foram 46 anos de consolidação do fracasso que a empresa italiana Olivetti, a patrocinadora, tentou esconder. 

Plano B é um dos três filmes brasilienses classificados para a 46ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2013. O documentário resgata a história do filme perdido de Joaquim Pedro de Andrade, um dos ícones do Cinema Novo, que, logo após sua exibição no mesmo festival, em 1967, foi apreendido pela censura da ditadura militar. 

Produzido sob encomenda da Olivetti, Contradições de uma cidade nova não chegou a ser finalizado, porque os diretores da empresa retiraram o patrocínio quando viram a cópia de trabalho. Mesmo assim, o filme foi inscrito no Festival de Cinema de Brasília naquele ano, mas, apreendido pela censura, tornou-se uma raridade. “Finalmente vou ver esse filme”, exclamou a escritora Edla Van Steen, ao ser procurada por Getsemane Silva para falar sobre a obra. Na época, ela era assessora cultural da Olivetti. 

“Vi esse filme quatro anos atrás”, conta Getsemane Silva. “É um filme lindo, e achei interessante investigar a história do veto. Além disso, o filme é extremamente atual, foi como ver uma profecia do passado acontecendo no presente.” Havia três cópias do filme, restaurado recentemente. Para que fosse feita a restauração, a Olivetti italiana cedeu os direitos, desde que fossem retirados o nome da empresa e os dizeres: “A Olivetti, produzindo este filme, tem a intenção de salientar a coragem e a imaginação com que foi resolvido, de modo contemporâneo e inusitado, problema tão antigo quanto a história da civilização: projetar e construir uma cidade.” 

Plano B reforça e intensifica o desnudamento das elites brasileiras feito pelo filme de Joaquim Pedro de Andrade. Foi o preconceito e o desprezo pelas classes menos favorecidas que levaram ao fracasso uma das ideias mais geniais do século XX. “A atitude de exclusão, arraigada na classe média brasileira da época, seria a grande barreira para realizar um projeto modernista em sua totalidade”, reflete Getsemane. “O modernismo foi negado aos mais pobres. Foi um projeto de elite, vendido ao povo como mito de modernidade e igualdade”.

Chega a ser hilária a narração que se ouve aos 45 minutos de Plano B, retirada da propaganda oficial da época, com imagens atuais e da década de 1960: “A mística de Brasília contamina o país. A jovem cidade do Planalto Central é a estrela guia do futuro, a menina dos olhos do Brasil. Uma equipe dedica-se à arte de fazer cidades, dentro de perfeitas soluções dos problemas urbanos. Será a cidade dos parques e avenidas intensamente arborizadas, (...) como se no Planalto Central brasileiro a humanidade tivesse atingido a última expressão da civilização moderna.” 

O filme de Getsemane colhe depoimentos de várias pessoas que trabalharam no filme de Joaquim Pedro, como o roteirista Jean Claude Bernadet e o poeta Ferreira Gullar, que fez a narração. E de pessoas que trabalharam na implantação da capital, como a assistente social Maria Abadia, ex-governadora do DF, que atuou na remoção de favelas à época da inauguração. Ela se lembra até hoje “das ruas empoeiradas, com caminhões pipa distribuindo água entre os barraquinhos”. 

Os “barraquinhos”, que cercavam os edifícios monumentais de Brasília, foram transferidos para um cerrado absolutamente vazio, a quilômetros de distância. “Brasília foi defendida como mito, mas a cidade real é bem diferente”, observa Getsemane. “Apenas 8% da população do DF vive hoje no Plano Piloto. Uma micro minoria vive o mito do modernismo.” 

Este texto foi publicado na revista Roteiro Brasília, edição 220, de setembro de 2013

EXÍLIA NO LEITURAS


O jornalista Maurício Melo Júnior comenta, no programa Leituras, da TV Senado, os livros O jugo das palavras, de Raul da Távola, e Exília, deste que lhes escreve.

[estante afetiva] À BEIRA DE QUASE NADA

Os personagens de Sérgio Fantini parecem viver numa comunidade onde todos têm muito em comum. Estão sempre na pindaíba, mas encaram a dureza da vida com bom-humor; andam à toa pela cidade; tomam cerveja em botecos pé-sujo; comem um pastel; esperam ônibus de madrugada, gostam de filosofar enquanto esperam passar a chuva. E, no entanto, quando essas figurinhas comuns circulam pelas páginas dos livros de Fantini, há sempre alguma coisa fora do comum para acontecer. E, mesmo que não aconteça, a gente prossegue na leitura até o fim.

Qual é o segredo? Em Novella, seu livro lançado recentemente pela Jovens Escribas, de Natal, a lição está posta. Por que Novella? – ele responde num prefácio que mais se parece uma peça de ficção. Você pode até pensar que ele está mesmo enrolado com processos judiciais, mas desconfie. Sérgio Fantini já enganou até a comissão editorial de uma grande editora, ao enviar-lhes um conto em forma de carta – eles acharam que era mesmo uma carta e publicaram seu conto com nome trocado. É uma história divertida, se quiser saber os detalhes, peça a ele que lhe conte. 

Novella começa com duas histórias sobre personagens muito comuns, tipo aqueles que parecem nada fazer que valha uma história, mas depois Fantini começa a plantar umas armadilhas no caminho do leitor. Em Sua, ele mostra que em pouco mais de duas páginas é capaz de transformar uma figura absolutamente fútil numa boa personagem, ou em personagem de uma boa história. Em Daqui pra frente, ele invoca Wander Piroli para construir um mini-conto instigante. Mão certíssima.

Há outras histórias assim; não vou falar de todas. Mas é preciso falar de Praia da Estação, um manifesto pela liberdade, pela alegria e pela vida que ele transforma em texto poético, e de Dorinha, uma historinha feliz vivida por personagens simples, não simplórios, que parece advertir o leitor que tudo aquilo que ele almeja para sua aposentadoria é uma grande bobagem. No final, vem a história mais longa, Muito silêncio (por nada), mas essa eu vou deixar engatilhada para o leitor encerrar o livro. Vamos dizer, Maria, que a vida é feita de equívocos, mas sempre nos resta a fantasia.

MARX HAMLET BERMAN MARINO


Uma análise do escritor W. J. Solha sobre o livro de poemas Exília:
 
"  Marx diz sobre a época em que viveu, no Manifesto de 1848, que TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR, frase que se tornou título de uma obra bem mais recente, de Marshall Berman, em cujo prefácio se lê:

São todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança — de autotransformação e de transformação do mundo em redor — e pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

“Todos”, ele diz. Shakespeare, venerado por Marx, faz Hamlet se lamentar, ante a situação que vive (conforme tradução de Luís I, de Portugal):

Ultimamente, nem sei por que, perdi toda a minha alegria, renunciei a toda a especie de exercicio; e sinto na alma uma tal tristeza, que esta maravilhosa machina, a terra, me parece um esteril promontorio, este esplendido docel, o céu, esse magnifico firmamento suspenso sobre nossas cabeças, essa abobada sumptuosa, onde brilha o oiro de innumeras estrellas, tudo me parece um infecto monturo de vapores pestilentes.

E eis o “clima” de Exília, conforme seus melhores versos:

A cidade
é o lado de fora dos muros do cemitério.

(Definição de cidade, pág. 49)

Este é meu corpo (que) a cada retorno a ancestrais paisagens
descobre jamais ter estado lá.

(Amálgama, pág. 52)

Se nem meus limites
dão forma ao que sou,
onde procurar
o que não sou?

Infinitos Limites, pág. 60)

Quando me acerco da cidade sonhada
não está lá

(A cidade Sonhada, pág. 65)

Nunca estou onde estou.
(A cidade Sonhada, 65)

Atônito nada
sempre à espera.

(Nenhuma Nuvem, 67)

Homens perdidos entre lapsos de memória.
(Brasília sob a Neve, 68)

Correndo atrás do sonho que acabou.
(London sweet Londres, 71)

Criatura sem norte,
inventa perfídias,
sonhos e fábulas,
e diante da morte
erige catedrais
onde perde a alma.

(Dia das Caças, pág. 26)

Paredes nada sustentam,
não há imagem no espelho.

(Desconstrução, 102)

Aqui houve uma cidade.
(Desconstrução, 104)

E eis o seu momento mais Hamlet-Marx-Berman:

Há o cosmo, o universo,
e no entanto
todo o concreto se desvanece.

(O Velho Poeta, 107)

Nesse contexto, só a arte salva. Porque os poemas guardam/ o que outras vozes / emudecem. (Aquarela, 87)

Há um momento em que as luzes se apagam
e tudo se ilumina:
as razões incompreensíveis,
o caminho dos acasos,
a ordem do universo,
e os mistérios
impossíveis de enunciar.

(Cenário ao Fim da Tarde, 81)

Daí A luta por um lugar/ no poema.
(Palavras, 74)

"

À DERIVA NA CIDADE

As cidades guardam segredos em seus caminhos. As cidades e suas erosões, cicatrizes, feridas, cansaços. As cidades e suas memórias, visões, sombras e clareiras. A cidade e suas artérias, seu sangue, poeira, fragmentos, desejos. Carícias e agressões. Riquezas e misérias. Imagens e miragens.

Grafitti de José Augusto Iowa
Deixar o olhar se perder à deriva nessas cidades que se multiplicam dentro da cidade. No sábado, 17, um grupo de pessoas vai percorrer o centro de Goiânia com o espírito aberto para essa cidade que é de cada um e é de ninguém. Uma cidade inventada por um olhar pessoal. É a Deriva Fotográfica do Bem. O objetivo é descobrir a cidade imaginária de cada um. Vamos nos encontrar no coreto da Praça Cívica, às 8h, para a partir daí recriar em imagens a cidade que se expuser (ou se esconder) aos nossos olhos. 

Na sexta-feira, 16, vamos conversar sobre o que será, o que não será, o que poderá ser essa expedição que espera apenas a surpresa. Participarei de um bate-papo com a arquiteta Marcia Metran e o fotógrafo Helio de Oliveira, quando tentaremos convergir nossas visões pessoais sobre a cidade e tentar compreendê-la sob o olhar da arquitetura, da fotografia e da poesia. Será no Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (UFG), a partir das 20h.  

Vou apresentar aos participantes da Deriva o meu livro Exília, criado a partir do sentimento de desenraizamento que atormenta o artista e o cidadão comum e que representa a tentativa de explicar esse lugar que só existe dentro de cada um de nós, como um refúgio pessoal e utópico. E tentar compreender a poesia como ferramenta para criar espaços mentais e espirituais que nos salvem de um mundo inóspito e devorador. 

A Deriva nasceu em 2008 como disciplina do curso de Arquitetura da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e depois passou a acontecer de maneira informal, sob a coordenação do arquiteto e professor Braúlio Vinícius Ferreira. Os inscritos doam litros de leite para a Missão Pão e Vida, entidade que apoia moradores de rua e dependentes de drogas. As imagens e textos que resultarem dessa experiência serão publicados no site da Deriva

A BABEL DA POESIA


Quando o avião pousou no aeroporto de Lima, no Peru, por volta de meio-dia do dia 3 de julho, tinha início uma fascinante experiência. Eu chegava à cidade para participar do II Festival Internacional de Poesia de Lima, o Fiplima, a convite de seus organizadores, e estava ansioso para saber como se daria o encontro, durante os quatro dias do evento, entre os 114 poetas de 30 países que o evento anunciava. 

A Casa da Literatura Peruana
Realizado pela prefeitura da cidade e pela Associação Fórnix Poesia, o Fiplima contou com o apoio de grande número de empresas e entidades, incluindo a Unesco e a Embaixada do Brasil. Quem manteve a máquina funcionando , resolvendo pequenos e grandes problemas, foi o poeta Renato Sandoval, que contou com uma equipe dedicadíssima e um grande número de jovens voluntários. 

Outro personagem importante foi o próprio público, que prestigiou o evento. O Peru tem uma relação carinhosa com seus escritores, que se manifesta em entidades como a Casa da Literatura Peruana, sediada em edifício majestoso, no centro da capital. Não se faz um festival internacional de poesia em lugar qualquer.  

Fizemos 23 recitais, distribuídos em auditórios de bibliotecas, parques, universidades, centros culturais, em diferentes pontos de uma cidade enorme e caótica. Lima tem clima úmido, onde o tempo é permanentemente nublado e raramente se vê a cor do céu. Para chegar ao local do evento, os poetas escalados, geralmente em número entre sete e nove, eram transportados em vans contratadas pela organização do festival. No interior do carro, que inevitavelmente ficava preso em enormes engarrafamentos, o som era de uma babel, onde se misturavam as mais diversas línguas. 

Nos recitais, cada poeta falava um poema em sua língua original e em seguida um dos organizadores lia uma tradução em espanhol, ouvidas, ambas as versões, por um público atento, curioso e sensível. Havia, entre os participantes, poetas de países tão distintos quanto Suécia, França, Dinamarca, Palestina, Argélia, Armênia, Espanha, Noruega, Sérvia, entre outros, além dos latino-americanos – Argentina, Uruguai, Colômbia, México, Brasil. Alguns desses escritores nem compreendiam o espanhol, o que tornava os recitais ambientes sonoros sem muito sentido para eles, a não ser pela curiosa musicalidade da poesia em línguas estranhas. 

Mesa brasileira
Do Brasil, fomos 10 poetas convidados. Além deste que lhes escreve, lá estavam Affonso Romano de Santanna, Fabrício Marques, Iacyr Anderson Freitas, Sérgio Cohn, Fabrício Corsaletti, Luiz Silva Cuti, Lucila Nogueira, Camila do Valle e Angélica Freitas. O evento coincidiu com a realização da Festa Literária de Paraty (Flip), que excita de tal forma a imprensa cultural brasileira que não se fala de outra coisa. Uma pena, porque o Brasil foi o país convidado de honra desta edição da Fiplima, e creio, sem julgar a minha parte, que nossa poesia estava bem representada. 

Ao lado de mais de 100 poetas, ainda que todos hospedados no mesmo hotel, era impossível aproximar e tomar conhecimento de todos. No entanto, foi riquíssima a experiência de entrar em contato com a poesia de escritores de grande talento. Cada um em seu canto, formados em culturas tão diversas, esses homens e mulheres praticam o ofício de ler o mundo pela linguagem da poesia, que supera fronteiras e os une ao redor das afinidades e diversidades de sua arte.

A poesia carrega o vigor de quem toma da palavra para lutar contra a adversidade, enaltecer a beleza, demonstrar seu estranhamento diante de um mundo caótico ou questionar aparentes certezas. A poesia é uma linguagem mágica, por não se prender aos limites do sentido e estar aberta a todas as possibilidades. É o que os poetas têm em comum, ainda que venham de culturas distintas.

De 4 a 7 de julho, quando se deu o encerramento do festival, ouvi poemas que me surpreenderam pela beleza, profundidade e força. Falados em idiomas familiares ou estranhos, muitos deles permaneceram reverberando na mente e no coração. Ao deixar Lima, eu tinha certeza de que havia enriquecido e aprofundado um pouco mais a minha experiência com a poesia. 

EXÍLIA E A REVOLUÇÃO DOS 20 CENTAVOS


Cheguei a São Paulo na manhã de 17 de junho, segunda-feira. Na semana anterior, milhares de pessoas começaram a lotar as ruas, se manifestando, primeiro, contra o aumento das passagens de ônibus, e depois, em defesa de outras bandeiras. O lançamento de meu sexto livro de poemas, Exília, estava marcado para o dia seguinte, terça. Enquanto eu autografava livros na Casa das Rosas, a avenida Paulista era tomada por manifestantes.  

Casa das Rosas, na av. Paulista
Era o início de uma maratona de duas semanas, que se encerraria na quinta, 27, em Brasília. Ao longo desse trajeto, os protestos caminharam ao meu lado. No dia 20, quinta, dia do lançamento em Passos, minha terra, soube que lá também o povo iria às ruas – a primeira manifestação estava marcada para a semana seguinte. Era um dos assuntos do público que me prestigiou na Livraria Mar de Minas. Em Belo Horizonte, na manhã do sábado, 22, enquanto eu conversava sobre Exília na Livraria Mineiriana, na Savassi, manifestantes se reuniam no centro. Na quinta seguinte, 27, lancei finalmente em Brasília, depois de ver pela TV alguns sinais de que o governo pensava em governar.  

Escrever um livro de poemas é sempre uma aventura. Durante três anos, pensei, refleti, observei e deixei fluir emoções e questionamentos, até chegar ao volume que tomou forma na edição da Dobra Editorial. Sair às ruas para protestar também é uma aventura, e, assim como o poeta, o manifestante tem emoção e indagações à flor da pele. Meu livro tem como tema o sentimento da falta de lugar no mundo, que incomoda o cidadão que observa seu ambiente e se sente desenraizado e acuado. Os jovens nas ruas reivindicam um melhor lugar para viver. 

As manifestações aconteciam todos os dias. Após o lançamento em São Paulo, recebi mensagens de amigos e escritores, que se desculpavam por não terem conseguido chegar ao local. Outros, que não se explicaram, não precisaram fazê-lo: eu sabia que para muita gente era mais importante estar nas ruas protestando do que no lançamento de um livro de poemas. Também houve os que chegaram já no fim do evento, ou não chegaram a tempo de pegar a Casa das Rosas aberta. E houve os que driblaram passeatas e engarrafamentos para me encontrar na Casa das Rosas. 

Quando se planeja o lançamento de um livro, para dois meses depois, deve-se contar com o imprevisto, embora nada se possa fazer contra ele. Neste caso, o imprevisto foi a enorme energia que levou centenas de milhares de pessoas às ruas, diariamente, em dezenas de cidades. As ausências, em qualquer tipo de evento, e em particular em lançamentos de livros de poesia, são inevitáveis e previsíveis. Por isso, ao invés de lamentá-las, prefiro enaltecer as presenças. E recordar encontros, reencontros e boas, ainda que rápidas, conversas.  

“Não por ser gentil, / mas ardiloso, / meu país me acolhe nos braços / e expulsa meus sonhos / entre um e outro cansaço / (por mais abertos / os horizontes / mais faltam espaços).” Uma estrofe do poema Infinitos limites, página 59 de Exília, me descreve em meio à confusão. Mas estou cercado de pessoas queridas. Amigos novos, amigos antigos, amigos de sempre. Penso em cada um e fico feliz. Exília chega às mãos de pessoas importantes para mim. A guerra acontece lá fora. A guerra sempre acontece. Mas, se esse deserto inóspito me acolhe com mãos ásperas, a presença dos amigos é a marca que permanece. 

A CAMINHO DE EXÍLIA

[clique para ampliar] 
Esta é a capa de meu novo livro de poemas, Exília, um belo trabalho de Regina Kashihara. Edição da Dobra Literatura, o livro terá lançamentos a partir da próxima semana. 

Na terça-feira, 18 de junho, vamos lançá-lo em São Paulo, na Casa das Rosas. Na quinta-feira, 20, em Passos, na Livraria Mar de Minas. E no sábado, 22, em Belo Horizonte, na Livraria Mineiriana. Volto a Brasília para lançá-lo no restaurante Carpe Diem na quinta, 27 de junho. 

Mais detalhes desses eventos - endereços, telefones, horários - estão disponíveis na coluna à direita. Informações sobre o livro podem ser lidas no menu superior deste blog, na aba "Exília". 

Contatos com o autor: am.versoseprosas@gmail.com

Outras informações: Alexandre Marino Versos e Prosas, no Facebook. 

[crônica] O RELÓGIO DE MEU AVÔ



Meu avô morreu em janeiro de 1975, aos 85 anos. Eu, aos 18, não entendia bem a morte e não imaginava que, quanto mais se vive, mais ela se torna real e presente. Naquele dia eu estava em Belo Horizonte, fazendo as últimas provas do curso colegial. Morava numa república no 22º andar do edifício JK. No final da tarde, bateram à porta. Era um amigo, Helder Piantino, conterrâneo que morava alguns andares abaixo. Nosso apartamento não tinha telefone. Sempre que ele batia à minha porta, eu sentia certo desconforto. Naquele dia foi pior, porque havia deixado meu avô doente. Minha mãe pedia que eu ligasse. 

No domingo anterior, pouco antes que eu saísse em direção à rodoviária de Passos, minha mãe me puxou para um canto, olhou-me nos olhos e disse: “Vá se despedir de seu avô, pode ser que você não o veja mais.” Lembrei-me dessas palavras quando tomei o elevador ao lado do Helder, para lhe telefonar. 

Era uma terça-feira. Havia um ônibus para Passos à meia-noite. Dormi pouco durante a viagem. Pensava nas histórias sobre tempos antigos de Passos, que meu avô gostava de contar. À noite, sentava-se à mesa da sala do sobrado; minha avó, minha mãe e minhas tias ao redor e eu no colo de alguma delas, para ouvi-lo falar. 

O velho Chico Gomes, como era conhecido, teve inúmeras profissões. Quando bem jovem foi ferrador de cavalos. Nessa época, um fabricante de cigarros oferecia prêmios em troca dos selos que lacravam os maços. Meu avô, que foi fumante a vida inteira, conseguiu juntar mil selos e ganhou um relógio de parede. Quando contava isso, apontava orgulhosamente para o relógio às suas costas, imponente na parede da sala. Badalava de meia em meia hora, e duas vezes por semana meu avô subia numa cadeira para lhe dar corda. 

Desde menino, eu gostava de ouvir os badalos do relógio, que permaneceu naquela mesma parede por mais tempo que meu próprio avô dentro do sobrado. Pelo processo natural da vida, um homem nasce, amadurece, envelhece e morre, e Chico Gomes morreu de velho. De certa forma, a casa que ele construiu passou pelo mesmo processo. Consta que ficou pronta antes de 1910. Em dezembro de 2007, foi fechada por falta de moradores. 

Cheguei a Passos ao amanhecer. O ônibus da Transilva estacionou na velha rodoviária da Praça do Rosário. Atravessei a rua e desci a Antônio Carlos. Seria mais rápido pela Deputado Lourenço de Andrade, mas fiz meu caminho habitual, passando pela Praça da Matriz, rua Santo Antônio e virando à direita na Travessa Inconfidentes. Na esquina, parei por alguns momentos. Depois, virei à esquerda e cheguei ao velho sobrado. Na época, os velórios aconteciam nas próprias residências, e havia muita gente na calçada. 

Subi, sentindo cada degrau, e da sala de visitas tive a última visão de meu avô. A porta de vaivém que dava acesso ao interior da casa estava aberta. Haviam retirado a mesa da sala de jantar e a cômoda que ficava junto à parede do fundo. À esquerda de meu avô, o relógio parecia observar a cena: o velho Chico Gomes cercado de parentes, vizinhos, amigos da família, indiferente a todos. 

O relógio marcava quatro horas e alguns minutos. O horário exato da morte de meu avô. Quando ele exalou o último suspiro, o relógio parou junto. Em respeito à memória do velho, ou à estreita relação entre eles, ninguém ousou mexer no relógio por algum tempo. Mas depois o puseram para funcionar de novo, como se assim pudessem trazer meu avô de volta. 

[poema] PELO DIA NACIONAL DA POESIA

Clique na imagem para ampliar.
Comemorando o Dia Nacional da Poesia, 14 de março. Uma data para nos lembrar que a poesia está presente em todas as horas e todos os dias. 


YOANI SANCHEZ E OS MILITARES


Yoani, durante a viagem de seus sonhos

Eu não nasci ontem. Eu senti o que foi a ditadura militar. Quando estudante, fui acuado muitas vezes por policiais a cavalo por participar de manifestações. Nunca fui preso, mas amigos foram. Alguns foram torturados. Ainda adolescente, fui pressionado por oficiais do Exército por causa de uma revista literária que co-editava. Minha formatura na universidade se realizou sob estado de tensão, por causa da grande quantidade de carros da polícia estacionados diante do auditório. Sonhei muito com liberdade, democracia e o fim do maniqueísmo da época da ditadura: ou contra ou a favor. 

Tenho pensado muito nisso ao ler as notícias sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez. Nunca fui a Cuba. Era admirador de Che Guevara. Também cheguei a ser fã da revolução de Fidel Castro. Acredito nos avanços sociais que a ilha alcançou. Mas não posso entender por que é tão difícil para os cubanos saírem da ilha, nem que seja a convite de entidades internacionais. Não posso admitir que aqueles que saem às escondidas sejam capturados e fuzilados, como fugitivos de prisões. Por isso, Cuba não me seduz. 

Aquele país com liberdade, democracia e um universo político amplo, aberto a manifestações e ideologias diversas, com que eu sonhava na época da ditadura, está cada vez mais distante da realidade. Tive um choque ao ler no jornal que Yoani, em visita ao Brasil, foi impedida de lançar um livro na Livraria Cultura de São Paulo. O evento foi cancelado por falta de segurança, devido às hostilidades praticadas por manifestantes barulhentos. 

Tento imaginar qual era a intenção desse grupo. Impedir uma autora de autografar um livro? Ou queimar os livros dela, da mesma forma que os militares faziam durante a ditadura? A mesma laia de gente havia impedido a exibição de um filme na Bahia, assim como a censura fez com inúmeros filmes, livros e jornais. 

Quem é esse pessoal agressivo, violento, que tem perseguido a cubana? Qual o problema de criticar Fidel Castro? Qual o problema de Yoani falar a quem gostaria de ouvi-la? Não me interessam neste momento os argumentos dela ou de seus adversários. Mas eu gostaria muito de saber quem são esses moleques que a têm impedido de se manifestar, da mesma forma que os generais, ou qualquer soldadinho pé rapado, faziam com os adversários na época da ditadura militar. 

Se tudo isso vai acabar em piada de salão, como sempre acontece no Brasil, é bom lembrar que a ditadura não foi uma piada. É bom lembrar sempre de Rubens Paiva, um ex-deputado assassinado cujo corpo jamais foi encontrado; é bom lembrar do poeta Nicolas Behr, que era pouco mais que um adolescente ao ser processado pela Lei de Segurança Nacional por vender livros de poesia em bares de Brasília; é bom lembrar de Carlos Alexandre Azevedo, que se suicidou aos 40 anos sem conseguir superar o trauma da tortura que sofreu quando não tinha dois anos. 

Se nos anos 60-70-80 a repressão vinha do próprio governo militar, hoje temos nas ruas um grupo de jovens intolerantes, arrogantes e donos da verdade que não admitem liberdade para quem vai falar o que não lhes agrada. Provavelmente alguns desses jovens ficam indignados quando um homossexual é espancado na rua, mas não conseguem compreender um princípio básico da democracia, que é o de ouvir e ser ouvido, que a violência, na verdade, não cala ninguém. Da mesma forma, algumas pessoas que nas redes sociais combatem a visita da cubana, com frases agressivas ou piadas, costumam postar protestos contra homofóbicos e racistas. 

A imprensa divulgou fotos de Yoani em companhia de representantes do que há de pior na política brasileira, quando ela esteve no Congresso Nacional. Gente como o deputado Jair Bolsonaro, fascista que defendeu a tortura praticada pelos governos militares. Mas onde estava a presidente Dilma Rousseff, testemunha das atrocidades dos porões da ditadura? Onde estava Chico Buarque, que teve tantas canções censuradas? 

Essa gente não está entendendo nada. Não está entendendo que muita gente lutou, sofreu e morreu para construir um país melhor e mais justo, o que só é possível em ambiente democrático. Eu gostaria muito de viver num país onde a liberdade de manifestação fosse realidade, mas por enquanto consigo apenas me envergonhar.  


A foto que ilustra este texto é de Edmar Melo (agência Efe)

[crônica] AS IDADES DO HOMEM



Há algum tempo uma revista anunciou com certo estardalhaço que o brasileiro que chegará aos 120 anos de idade já havia nascido. Com a morte recente do arquiteto Oscar Niemeyer, o tema da longevidade voltou à discussão. Ele nos deixou alguns dias antes de completar 105 anos, idade a que também chegou outra brasileira famosa, a D. Canô, mãe de Caetano Veloso e Maria Bethania. Serena e sábia, ela percebeu que seu tempo se esgotara, e pediu que os filhos a retirassem do hospital onde se tratava de uma isquemia e a levassem para casa. Morreu no dia de Natal. Até um ano antes, estava cheia de saúde, encarando noitadas para ver shows dos filhos.

Ainda que o misterioso conterrâneo que chegará aos 120 esteja entre nós, a garantia da idade avançadíssima jamais nos livrará do processo do envelhecimento, que segundo a ciência tem início antes dos 40 anos e, na minha visão de leigo, no momento do nascimento. Porque viver, afinal, é envelhecer. 

O ser humano, e talvez todas as demais criaturas, envelhece aos pedaços. E um dos pedaços mais complicados do homem – e aqui me refiro ao gênero masculino – é um pequeno órgão chamado próstata. Dizem que, se o homem fosse um automóvel, haveria um “recall” em massa para resolver os problemas dessa peça, muito sujeita a defeitos devido ao seu posicionamento mal projetado. 

Por isso, quando uma médica, após uma ecografia, me disse que eu tinha “próstata de menino”, me espantei. Olhei-a com meus olhos de sexagenário e agradeci a comparação, que sintetizava o estado geral e dispensava explicações. 

Os olhos deram seu primeiro sinal de envelhecimento aos 17 anos. Pela janela do apartamento onde morava, no bairro Carlos Prates, de Belo Horizonte, percebi que o relógio da torre da igreja, a três quarteirões de distância, parecia embaçado e pouco preciso quando eu fechava o olho direito. Hoje, aos 56, ambos carregam significativa miopia, um pouco de diplopia, astigmatismo e agora deram para reclamar de cansaço. Assim, carrego comigo dois óculos, que uso de acordo com a necessidade. E me lembro que minhas tias, antes de pegar na máquina de costura, me convocavam, quando menino, para enfiar a linha no buraco da agulha... 

A audição, para minha surpresa, foi classificada como “excelente” após um teste. Cismado de que estava ficando surdo, fui tirar a prova. Para o médico, que me deu nota dez, não havia o que contestar. Para mim, ficou a dúvida: embora às vezes eu ouça excessivamente bem, há outras em que quero ouvir e não consigo. 

Talvez o problema esteja no cérebro, que, mesmo protegido na caixa craniana, tem sofrido com o calor. Meus cabelos diminuíram bastante ao longo do tempo, e os que permaneceram estão mais finos. Além disso, boa parte deles vai perdendo a cor. Quando senti saudades do garoto cabeludo que fui e tentei deixar crescerem os cabelos, eles simplesmente se recusaram. 

Manter o espírito jovem significa manter a inquietação, a curiosidade e o inconformismo naturais da juventude, mas o corpo, ou seja, a matéria, submete-se às mudanças ditadas pelo tempo que passa. Nossas células têm prazo de validade, e a passagem do tempo é visível no rosto, no corpo e nos gestos. Ou às vezes é invisível. Ainda que eu goste muito de caminhar, no mato ou na cidade, suba e desça escadas com desenvoltura, há alguns dias ouvi de um médico: “Sua válvula mitral está com prazo vencido.” 

Como se vê, não temos uma idade, mas várias. E a grande vantagem da maturidade que vem com o passar do tempo é o que aprendemos. Aprendemos, por exemplo, a encarar as adversidades com serenidade. E a tornar realidade aquele que é meu slogan preferido: “Um dia vamos rir disso tudo.” 

É o que pretendo, lá na frente. Não rir da vida, mas rir com ela. Com todos os sentidos ainda vivos, mesmo que de óculos, careca, de barbas brancas e coração reformado. 


[Publicada em CNP Notícias, edição de dezembro de 2012]

AOS AMIGOS, UM BOM 2013.

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Agradeço a todos os amigos e demais leitores pelas visitas a este espaço. Espero que continuemos trocando ideias em 2013.