A polêmica da semana foi o livro didático Por um mundo melhor, de Heloísa Ramos e outros autores, publicado pela Editora Global e distribuído pelo MEC para uso de jovens e adultos em processo de alfabetização. O assunto rendeu matérias em vários jornais e debates em redes sociais e mesas de bar, e muita gente que se posicionou sobre o caso, contra ou a favor, não teve o cuidado de pelo menos ler o capítulo que deu início à polêmica – Escrever é diferente de falar, página 11.
Os autores são simpáticos à causa dos linguistas, que defendem o mesmo valor para a linguagem culta e a linguagem popular e pregam que a língua culta é instrumento de dominação. A partir dessa idéia, ensinam que a falta de concordância na frase (“os livro”, “os peixe”) não identifica um falar errado, mas apenas inadequado.
Está escrito no livro que a concordância entre artigo, substantivo, adjetivo “ocorre na norma culta”, mas, “na norma popular, a concordância acontece de maneira diferente”, o que não prejudica o entendimento.
Seguindo o raciocínio, o livro ensina ao estudante que ele pode falar “os livro”, “claro que pode”, mas adverte que em determinadas situações, ele “corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”.
Os autores não esclarecem, no entanto, se o aluno estará sendo vítima de “preconceito linguístico” se sua fala “inadequada” for corrigida pelo professor, cuja obrigação é, obviamente, ensinar-lhe a norma culta...
O livro estabelece uma espécie de luta de classes linguística, ao contrapor classes populares e classes dominantes, e variedade culta e variedade popular da língua. Veja este trecho: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio – vale lembrar que a língua é um instrumento de poder -, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular.”
Depois de observar que as duas variantes são eficientes como meios de comunicação, o livro afirma que “a classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio”.
Discutir esses conceitos na universidade, onde se aprofundam as discussões, é uma coisa. Outra, muito diferente, é colocá-las de modo superficial para jovens e adultos em processo de alfabetização, que estão entrando em contato com o conhecimento muito tardiamente, e deveriam ser estimulados a adquiri-lo. Ao contrapor a linguagem “da classe dominante” à linguagem das classes populares, os autores correm o enorme risco de jogar o estudante não só contra a norma culta, como também contra o conhecimento.
O que os alfabetizandos precisam entender é que a norma culta e o conhecimento são, na verdade, instrumentos de libertação. E que o acúmulo de conhecimento poderá abrir-lhes novas perspectivas e opções de vida. E isso o livro não mostra. Mostra, isso sim, depois de expor as contradições sociais, que “o falante tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”.
Na página 12 do livro, está escrito que “como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário”.
Equivocado e simplista. A escola tem obrigação de ensinar a norma culta, porque ela representa conhecimento. Representa civilização. É a norma culta que porta o conhecimento gerado pela humanidade. A partir do momento que adquirir contato com a norma culta, ele transformará sua vida – e sua fala. O conhecimento não ocupa lugar, e quanto mais é adquirido, mais amplos se tornam os horizontes.
Mas, para os autores, a norma culta é apenas “uma variedade da língua portuguesa” (pág. 11).
Não se pode dizer ao estudante que a norma culta gera preconceito – o livro não diz isso, mas insinua, ao afirmar que pessoas que dominam a norma culta podem manifestar esse preconceito. Mas em nenhum lugar diz que os falantes da linguagem popular podem manifestar preconceito contra os falantes da língua culta.
Ambas as formas de preconceito são de origem social, mas chamar os críticos do livro de “pseudointelectuais” é manifestação de um preconceito mais grave, porque denota desprezo pelo conhecimento. É como aquele sujeito que diz que “eu nunca precisei de livros pra chegar aonde cheguei”. Afinal, o papel da escola e dos livros é levar o indivíduo a adquirir conhecimento e aprender a norma culta. Ou seja, educar.
O Brasil já perdeu o bonde da educação há muito tempo. Hoje, pagamos alto preço por isso. O baixo nível dos políticos, a corrupção, o desprezo pela língua portuguesa, o grande número de analfabetos, a pobreza e a miséria, o analfabetismo funcional... Sem uma população bem educada – ou seja, que domine a norma culta, tenha acesso aos bens culturais e saiba discernir e criar seus próprios conceitos – o desenvolvimento econômico do país será apenas uma bolha, e o desenvolvimento social dependerá sempre de benesses do governo.