[estante afetiva] O BANAL E O ASSOMBRO

Os dias começam com a luz que avança aos poucos sobre o céu negro, mas ninguém sabe como terminam. A sensação de normalidade é sempre enganadora. A banalidade do dia a dia, de vidas medianas, não é garantia de que as próximas horas não serão profundamente alteradas por um fato ou outro, às vezes igualmente banal. E nesse universo do imponderável, atua ainda um outro elemento transformador: o criador de histórias.

Francisco de Morais Mendes é um criador de histórias. Seu livro Onde terminam os dias traz uma dúzia de narrativas construídas com tal senso de liberdade que as torna simplesmente surpreendentes, em que personagens à beira do assombro são levados por caminhos tortuosos a um fecho inusitado, tão inusitado quanto real. E, para complicar ainda mais esse percurso humano acidentado, não raramente aparece o escritor, às vezes na pele de um personagem que, dessa forma, ganha outro perfil, como o super-herói que emerge de sua identidade secreta.

Mas não há super-heróis no livro de Francisco. Em Pitanga verde, há  um herói derrotado, sutilmente instalado em momento histórico conturbado, no qual o heroísmo brota apenas das fantasias infantis. O tempo dos sinais, um dos momentos mais fortes do livro, é protagonizado pela mulher que, enquanto aguarda o sinal verde dar-lhe a ordem de retomar o movimento, mergulha em inesperado inferno, a partir do gesto banal de alisar os cabelos. Em Vanessa espera, o escritor se intromete para criar uma história paralela à outra que insiste em se desenrolar, como se a tensão não fosse suficiente.

Mitre no Hotel Júpiter persegue o leitor sem tréguas, ainda que ele esteja distante do livro, da mesma forma que o personagem persegue (ou é perseguido?) por uma mulher improvável. Também é fruto dessa luta do escritor com os fantasmas que o assessoram – ou o perturbam. Enquanto se desenrola a narrativa, não se sabe quem é o ficcionista – se o gerente do hotel, que escreve a história, ou apenas finge; se o hóspede, personagem dissimulado e sempre suspeito; ou o autor do livro, que oscila entre contar a história ou dar voz a quem pretende fazê-lo.

Em Os bonecos, ficção e memória se misturam dentro de uma ficção maior. Mundo louco é uma abordagem original dos simulacros que criam mundos em espiral. São universos sempre a meio caminho entre o real e o irreal, em que o fio dos acontecimentos é frequentemente conduzido a desvios inesperados. Assim prossegue a sequência de histórias, até outro de seus pontos altos, O sumiço do gigante verde. Aqui, o clima de estranhamento e horror, gradual como o dia que anoitece, não é quebrado pela explosão repentina que deveria repor os acontecimentos em novo eixo, mas, ao contrário, os atira em outra turbulência imprevisível.

[história afetiva] PROTÓTIPO, O COMEÇO

Em dezembro de 1972, circulou na cidade de Passos, sudoeste de Minas Gerais, a primeira edição da revista literária Protótipo. Publicava contos e poemas de um grupo de estudantes do ensino médio, ou ginasial, como se dizia na época, com idades entre 16 e 19 anos. O expediente da revista explicava: “(...) Objetivando a descoberta de novos valores, voltados para o mundo que nos cerca, em forma e conteúdo, o sempre/real mágico, correndo livre na imaginação de cada um: aquilo que desejaríamos criar ou estamos botando pra fora do corpo.”
 
A revista era patrocinada pelos comerciantes da cidade, aqueles que se sensibilizaram com a inquietação dos jovens – filhos, sobrinhos, filhos de amigos, ou simplesmente conterrâneos. Passos, localizada a 350 km de Belo Horizonte, por estrada não totalmente asfaltada, tinha uma população de 30 mil habitantes. O país vivia conturbado momento político e efervescente momento cultural. Jovens artistas de todo o país colocavam sua criatividade a serviço da resistência à ditadura militar. Protótipo despertou a atenção dos oficiais que administravam o chamado Tiro de Guerra, onde os jovens prestavam o serviço militar obrigatório. E também de professores e artistas da cidade.

 
Do expediente da revista constavam os nomes de Antonio Barreto, Carlos Parreira, Alexandre Marino, Iran Machado, Antônio Rogério Daniel, Carlos Parada, Paulo Régis da Silva, Marco Túlio Costa e Marise Pacheco. “Protótipo é nós. Nosso modo de exprimir o mundo presente. Aqui-agora, nos explodimos em estilhaços/bagaços, no interior das vísceras. Por favor, reaja. Faz de conta que te agredimos”, apelava o editorial. 

 
Na imagem que ilustra este texto, a reprodução da capa da primeira edição da Protótipo, uma raridade. A revista, que pretendia mostrar aos conterrâneos os primeiros passos dos futuros escritores passenses, rompeu os limites da província e foi comentada nos principais veículos de comunicação do Brasil. 


Algum tempo depois, em 1981, o escritor Glauco Mattoso, em seu livro O que é poesia marginal, da coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, informava que Protótipo era uma das pioneiras do movimento da poesia marginal, ao lado da carioca O Feto.  Na época o rótulo de "marginal" para designar a mais recente geração poética brasileira ainda não estava assimilado pela cultura acadêmica, mas já era usado pelos autores, incluindo o próprio Mattoso. 
 
Um pouco da história de Protótipo será contada aqui, em capítulos. 


Leia outros capítulos desta história aqui ou aqui.