SUBINDO PELAS PAREDES


Sempre que leio um livro de Sérgio Sant´Anna lembro-me de meu professor de redação e edição de textos, escrevendo nas paredes de nossa sala no Departamento de Comunicação da Universidade Católica de Minas Gerais. Sim, nas paredes: o prédio era novo e ainda não havia sido pintado. Ele preenchia o espaço do quadro negro (naquela época, ainda se usava giz) e, para não apagar, continuava escrevendo nos quatro cantos da sala. Ao fim da aula, a sala parecia coberta de tatuagens, como as que adornam o corpo de Jana, personagem de O livro de Praga, que Sérgio acaba de lançar pela Companhia das Letras. 

As aulas do Sérgio, que costumavam durar bem menos do que o tempo previsto, permaneceram em minha memória não apenas pelo inusitado, mas também pelas lições certeiras que ele nos dava, ao analisar textos, nossos e de outros autores, apresentar novos escritores e comentar o ofício da escrita. Sérgio havia publicado poucos livros, mas já recebera reconhecimento internacional, tendo participado do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Uma de suas obras-primas, Confissões de Ralfo, estava ainda quente do forno, e ele escrevia Simulacros, cujos originais eram guardados numa gaveta de sua mesa de trabalho, num tribunal de Belo Horizonte. 


 O livro de Praga, que faz parte do projeto Amores Expressos, tem características em comum com aqueles, a começar pela tentativa de levar a experiência da narração além dos limites do mero contador de histórias. Sant´Anna mistura ficção, memória e ensaio em sua literatura, em textos que parecem transformar a linguagem proposta em simulacros desses gêneros. Em O livro de Praga, Sérgio brinca de se travestir de crítico de arte, reescreve textos lascivos de Kafka e apresenta obras de escultores delirantes, sempre em clima de sexualidade expressa. É prazeroso ler as divagações do personagem narrador sobre música, artes plásticas, literatura, Andy Warhol, Lewis Carroll, Kafka...

O projeto Amores Expressos tinha uma proposta ao mesmo tempo pretensiosa e singela: patrocinar a permanência de cada um dos escritores escolhidos, durante um mês, em uma cidade do mundo, para que lá eles escrevessem uma história de amor. A Sérgio Sant´Anna coube uma temporada em Praga. Imagino meu velho mestre passeando pelas pontes, vielas e recantos da capital tcheca, em busca de uma forma de rebelar-se contra a fórmula imposta pelos promotores do projeto. Escrever uma história de amor?
 

O subtítulo do livro é Narrativas de amor e arte, mas não foi bem isso que ele fez. Sérgio promove libidinosos encontros de seu personagem Antonio Fernandes com inusitadas parceiras, e cria para esses affairs uma Praga de fantasia, uma cidade dentro da outra, que o leitor não encontrará em qualquer guia turístico. Assim, esse alter-ego conhecerá uma prestigiada pianista que se apresenta para um único espectador; fará amor com uma estátua, tão bem descrita e analisada que o leitor correrá à enciclopédia (ou ao Google) para ver sua imagem; terá um caso com uma boneca, não daquelas infláveis, mas com aspecto infantil, e antes de deixar Praga, traçará uma policial, aquela que simboliza a repressão policial às constrangedoras situações em que o personagem se envolveu. 

Sérgio Sant´Anna jamais se contentou em simplesmente contar histórias – ele sempre injetou uma boa dose de experimentações em suas narrativas. O resultado dessas experiências o transformou em escritor cult, que, sem galgar muito alto as listas de best-sellers, sempre foi incensado pelos admiradores da arte da literatura, professores e críticos literários. Em O livro de Praga, Sérgio está cada vez mais abusado, ao mostrar que seu compromisso é, acima de tudo, com sua própria arte. Como fazia décadas atrás, Sérgio Sant´Anna abandona o espaço que lhe fora reservado e sobe pelas paredes.



[A foto de Sérgio Sant´Anna que ilustra esta postagem foi tomada
emprestada ao blog de João Gilberto Noll, e não tem crédito]