ORGULHO E VERGONHA

A senhora sorridente da foto levará desta vida um orgulho e uma vergonha. O orgulho é por ser filha de um dos maiores escritores brasileiros, João de Guimarães Rosa. A vergonha é por ter solicitado à Justiça a proibição de um livro, inspirada, quem sabe, nos truculentos censores da ditadura militar, de triste memória. Pior, essa sorridente senhora, que se apresenta como Wilma Guimarães Rosa, tenta retirar de circulação o livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, biografia escrita por Alaor Barbosa e publicada pela LGE Editora, de Brasília.

O fato que leva D. Wilma a orgulhar-se independe de suas ações. Ela é filha dele por força da natureza, e o pai foi grande escritor por força dos méritos dele. Quando, além de grande escritor, se tornou um herói, durante a segunda guerra mundial, trabalhando como diplomata e salvando a vida de milhares de judeus, Guimarães já vivia outro casamento e construíra outra família.

Já o fato que a marcará para sempre com a mancha da vergonha foi fruto de seu gesto consciente e deliberado. Ela moveu uma ação contra a LGE e Alaor Barbosa, pedindo à justiça que o livro seja retirado de circulação. Sua parceira nesse ato de censura, pasmem, é a Editora Nova Fronteira, uma casa publicadora de livros.

Ambas alegam incorreções e inverdades na obra de Barbosa, mas a verdade é cristalina: o interesse é comercial. Um livro escrito há tempos por Wilma Guimarães Rosa, Relembramentos, será reeditado pela Nova Fronteira. "Escrito" é força de expressão: o livro é apenas uma coleção de documentos, fotografias, bilhetes. A obra de Alaor Barbosa poderia prejudicar sua venda.

Wilma disse ao jornal Folha de S. Paulo que Alaor Barbosa nunca foi amigo de seu pai, contestando os encontros freqüentes entre os dois, na década de 50, narrados na biografia. Além disso, Wilma chamou Alaor de "vigarista", que, segundo ela, "se aproxima de gente importante para ganhar dinheiro".

Wilma cometeu crimes de calúnia, injúria e difamação. Mas Alaor Barbosa não vai processá-la. "Não quero incorporar à minha biografia a autoria de uma ação penal contra uma anciã que a experiência de quase 80 anos de vida não livrou de tremenda incontinência verbal morbidamente compulsiva", explicou ele.

Ao tomar conhecimento da ação de Wilma contra o livro, a LGE Editora se adiantou e o retirou das livrarias, contestando a ação em seguida. Por mais inconsistentes que sejam as razões de Wilma Guimarães Rosa e infrutífera a sua ação, é triste que um País que tanto lutou contra a censura assista agora, em pleno século XXI, tal gesto obscurantista da filha de Guimarães Rosa.

NOVOS LIVROS EM BRASÍLIA

Nesta terça-feira, 14 de outubro, o poeta Ésio Macedo Ribeiro lança Estranhos Próximos, no Rayuela (CLS 412), a partir das 19h.

Na quinta-feira, 16 de outubro, Mário Araújo lança o livro de contos Restos, na Livraria Dom Quixote do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a partir das 19h30. Haverá um bate-papo com o jornalista Sérgio de Sá. É interessante conhecer o que Millôr Fernandes escreveu sobre o livro: "Os contos do escritor paranaense são observações angustiantes do mundo que vivemos. Estilisticamente imprecisos em sua estonteante imprecisão. Mário é um escritor perigoso."

POESIA CENSURADA

A imprensa tem noticiado nos últimos dias a demissão, pela Escola Parque do Rio de Janeiro, do professor de literatura Oswaldo Martins, dedicado mestre que lecionava para as turmas de sétima e oitava séries do Fundamental. Martins é poeta. Tem quatro livros de poesia publicados pela editora carioca 7 Letras. O mais recente é Cosmologia do Impreciso, de 2008.

A Escola Parque é uma escola de classe média alta, que segundo a Folha de S. Paulo, cobrava mensalidade de R$ 1.161 dos alunos de suas unidades da Barra da Tijuca e da Gávea. O slogan da instituição: "Uma escola que estimula a expansão cultural."

Por que Oswaldo Martins foi demitido? Alguns pais de alunos "descobriram" que ele escreve poemas eróticos e pediram sua cabeça. Como se escrever poemas eróticos fosse uma atividade ilegal, criminosa, a escola atendeu ao pedido.

Oswaldo Martins é formado em letras pela PUC, mestre pela Universidade Estadual do Rio, com a dissertação Erotismo e gramática, índices da defloração - uma leitura de Manoel de Barros. Na Universidade Federal Fluminense, prepara doutorado com tese sobre o poeta italiano Pietro Aretino (1492-1556), conhecido autor de poesia erótica.

A Escola Parque promoveu em setembro uma semana literária. Martins foi convidado a comentar seu processo de escrita. Depois de ouvi-lo falar de sua paixão pela literatura, os estudantes foram à internet e descobriram seu blog, onde publica alguns de seus poemas. Não durou muito para que o pedido de demissão chegasse à escola. No dia 11 de setembro, foi demitido.

A hipocrisia da direção da escola e dos pais de alunos é incomensurável. Ou será que pensam mesmo que jovens de 14, 15 anos não sabem o que é sexo e não pensam no assunto? Será que vão proibi-los de ler Capitães de Areia, de Jorge Amado?

Sexo faz bem à saúde e derruba máscaras. Que Oswaldo Martins possa, agora, escrever seus poemas em paz.

A VELHA SENHORA ABENÇOA A CIDADE

É uma velha senhora, uma avó centenária, com seus longos braços abertos para o aconchego dos netos. Enorme, como se fosse gorda, oferece colo e conforto. A longa cabeleira redonda toma conta da praça, de uma rua a outra. Na verdade não é uma cabeleira, é uma copa, e não são cabelos, são folhas. É uma árvore, mas tem nome de mulher e, mais que isso, de santa: Árvore de Santa Bárbara. Não tem certidão de nascimento, mas há registros que lhe asseguram muito mais que 100 anos de vida. 

A história da árvore mistura-se à história da cidade que cresceu à sua sombra – Passos, que já foi uma pequena vila no sudoeste de Minas e hoje se espalha por antigos campos de café e pastagem. Conheci e convivi com essa árvore até a adolescência, e desde então penso nela sempre, se estou longe, e periodicamente volto para revê-la. Essa história de amor dura coisa de meio século. Ao dizê-lo, penso que estou velho, você também pensará, mas olho para a árvore e ela está quase do mesmo jeito que sempre a vi, jovem e bonita - então concluo que o tempo não faz tanto estrago assim. 
 
Perdi a conta de quantas vezes fotografei essa velha árvore. As fotos estão espalhadas em paredes, em alguns velhos álbuns, outras arquivadas no computador, estou cercado de árvores de Santa Bárbara. Também fiz vários poemas para ela, e é possível que faça outros, porque a árvore é um depositário de histórias e segredos, que se escondem estrategicamente a seus pés, dentro das dobras de sua pele, nos caminhos que só os pássaros conhecem, ainda que as crianças também andem por seus galhos à procura de aventuras ou para fazer voar suas fantasias.
 
A árvore posta-se, com elegância e paradoxalmente certa displicência, na praça do Cemitério - para ser mais exato, do lado oposto. É posição estratégica. Quase todos os passenses que vão a um velório, ou a algum enterro, ou simplesmente chorar diante de algum túmulo, passam antes sob sua sombra, e o estado emocional em que se encontram os deixa sensíveis para receber os benditos fluidos dessa santa árvore. Aconteceu comigo em dezembro passado, quando viajei em estado de desespero por 740 quilômetros, desde Brasília, para visitar minha mãe no hospital e acabei tendo de mudar o rumo, para vê-la pela última vez. 
 
Antigamente, os passenses velavam seus mortos em casa - foi assim com meus avós maternos - e os enterros percorriam as ruas diante dos homens que tiravam os chapéus e as lojas que cerravam as portas. E o último consolo do morto, depois dos sofrimentos deste mundo, era a sombra da árvore, que o acolhia por breves minutos, importantes minutos, ainda que o futuro fosse a eternidade. 
 
Falar de mortos e velórios pode ser triste, mas a Árvore de Santa Bárbara tem uma aura de felicidade e esperança, que atrai os passarinhos para seus galhos e os passantes para os bancos distribuídos sob sua copa. São taxistas, moradores das redondezas, gente que passa a trabalho, gente que passa vadiando, mendigos, engravatados, prostitutas, pensantes. Ali debaixo acaba o estresse, acabam os maus pensamentos, e o choro, se não acaba, pelo menos vem sem desespero. 
 
A árvore de Santa Bárbara é um símbolo. É um símbolo de Passos e do aconchego que a cidade oferece a seu povo e a esses passenses desgarrados. Ao olhar para ela, ao vivo ou em fotos, penso que esta cidade pode continuar bonita e forte, como cada vez mais tem sido, serena, acolhedora, de braços abertos. É assim que a árvore está, num velho desenho do artista plástico Wagner de Castro, ele mesmo com idade de tê-la conhecido pouco mais que um arbusto, e ainda assim até hoje exalando os bons fluidos de sua arte, como a própria árvore. No desenho, ela oferece sombra a um animal que pasta a seus pés, em cenário quase rural. Ela deve se espantar com a urbanidade que se espalhou a seu redor. 

A árvore é o vínculo histórico de Passos com seu povo. É um símbolo porque Passos, para mim, se parece com ela: uma sombra onde eu posso respirar e ser acolhido. Ao vê-la, sonho que a sabedoria que exala de seus velhos galhos e o carinho que transpira de sua casca grossa são incorporados pelas ruas, pelos paralelepípedos, pelas paredes das casas e pelas almas de seus viventes, numa relação abençoada.