O escritor Alexandre Bonafim, professor de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Goiás (UEG), escreve no Diário da Manhã, de Goiânia (edição de domingo, 7/12/2014), sobre meu livro de poemas Exília.
Em Exília (Ed. Dobra), o mais recente livro de poemas de Alexandre Marino, podemos contemplar uma linguagem de tensões, escritura a se esmerilar em si mesma, afiando-se num jogo de associações livres, oníricas, responsável por uma linguagem que, a despeito de voltar-se permanentemente para situações da realidade, tem em si mesma, pelo efeito da função poética, um burilado pergaminho de metáforas. Desde os românticos alemães, passando por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, a poesia tornou-se um emaranhado de associações lexicais raras, em que o processo de metaforização atinge uma agudeza intensa. Dessa forma, Marino não se atenta apenas aos referentes do real, mas sobretudo à própria expressão linguística, o que o torna um poeta sobretudo da consciência verbal. É o que podemos notar nessa pequena obra prima, O cavalo em chamas:
Um cavalo selvagem
branco como o assombro,
carrega uma labareda
a atiçar-lhe o lombo.
Mergulha no nevoeiro
onde uma ponte houvera,
pênsil sobre o penhasco
arrimo de corredeiras.
Este cavalo em chamas
galopa entre as brumas
à margem do precipício
por uma trilha sem rumo.
Atravessador de abismos,
o cavalo meio pássaro
enfrenta dor e cansaço
e a inépcia para o voo.
O fogo, essa estrela
cadente de encontro ao rio,
ilumina o cavalo peixe
sobre as águas bravias.
Para enfrentar o mistério,
incêndio no precipício,
resta a luz do homem
entregue à montaria.
Em seu fim e seu início
a vida costura rotas
nos passos iluminados
em caminhos sem respostas.
Essa assustadora chama
atiça a cavalgada
sobre o rio ignoto
que encanta e ameaça.
O cavalo porta as almas
de peixe, pássaro e fera.
E essa eterna chama,
alimento de quimeras
(p.11-12)
O cavalo a conduzir o cavaleiro é a própria linguagem a impulsionar o poeta, ou em um sentido existencial, o destino a talhar a condição humana. Nesse percurso de abismos, de fascínios, resta sempre a ambiguidade desse cavalo que, paradoxalmente, encarna o pássaro e o peixe, animais de outro habitat. Eis as tensões, enfim, que vão conflagrando a complexidade da própria linguagem, gerando paradoxos e associações encantatórias capazes de agudizar o mistério desse cavalo cujo fundamento, como a existência em si, é pura magia, denso enigma.
Em outro poema de bela fatura, Majestade, temos uma árvore que, assim como em O cavalo em chamas, encarna o real, mas o ultrapassa, instaurando no solo concreto o próprio arroubo do desconhecido:
Esta árvore
te acolhe e consola,
mas também tem fome.
Ao te assustares
com teus arredores,
feitos de não lugares,
sabes onde encontrá-la
para verter-lhe nos braços
teu pranto farto.
Ela também carrega
na carne
sinais do massacre
que te retalhou a pele
e as entranhas.
Mas ao contrário
dos que vacilam
em busca de um sinal
e apodrecem no solo,
a árvore
visita o paraíso
como hóspede de honra
e enfrenta o inferno,
onde deita suas garras.
Esta árvore
renuncia à seiva
para consolar-te
das tormentas e das secas,
e retrata tuas veias,
onde trafega o desamparo.
A única sombra
a protege-la
de teu olhar cruel
é a noite,
escultora de teus pesadelos.
Os pássaros
aninhados em seus galhos
te ensinam:
embora possas
adormecer
recostado em seu corpo,
o teu voo é falso,
teu abraço é falho.
A árvore, cravada em um cerne que não mais é o umbigo do mundo, âmago dessacralizado, possui, ao redor, não-lugares, vazios, desertos inóspitos onde o homem e a árvore têm de estabelecer morada, desvelando-nos uma situação existencial de extrema indigência e fragilidade. Dessa forma, a árvore, tal como o homem, vive em desterro, em exílio, circunstância vivencial que é, na verdade, o húmus de todo o livro e nos traz, em clave pós-moderna, a velha questão do poeta inadaptado, do albatroz baudelairiano sopesado pela força de uma sociedade cujo valor não mais é a beleza, a poesia, mas o dinheiro, a ambição e a usura. No entanto, teimosa, com raízes no inferno e a fronde no paraíso, a árvore resiste aos massacres, tal como o poeta que, também resistente, é um combatente audaz a fazer da linguagem o último refúgio no qual ainda resguarda sua humanidade.
Se no nível psicológico o exílio se desvela pela inadaptação, no plano físico do corpo vislumbramos um processo também angustiante, pois a carne perde a liberdade e enclausura-se em limites claustrofóbicos:
[...]
Este corpo
mal se acomoda
em suas esperas,
mas cercado de fronteiras
revolve o infinito,
porque só o ínfimo
interessa.
Este corpo emudece
no momento do grito
dentro da noite imensa,
[...]
Este corpo desconhece
o espaço que o acolhe
e rejeita,
e sabe a trilha secreta
dos deuses,
feita de abismos
e delicadezas.
[...]
Este corpo
cria um novo sonho
a cada pedaço
amputado,
recria o ninho
a cada exílio,
mas não compreende
mapas e rotas.
[...
Este corpo
se alimenta a esmo
e colhe da vida,
gota a gota,
o mais saboroso
veneno.
(p. 46-48)
O corpo, por fim, esfacela-se, fragmenta-se num amplo processo de desrealização da concretude física humana. Exílio a se findar em múltiplos exílios, cujo fim é a lenta dissolução da vida. Em um mundo inóspito, reificado, onde os processos de desumanização atingem uma agudeza antes nunca vista, o poeta ecoa seu canto dolorido, mas ao mesmo tempo vivo, num grito de prometeu rebelde, acorrentado, mas audaz na perspicácia de sua luta.
Em Exília, portanto, encontramos uma fecunda crítica à situação do homem contemporâneo, feita por uma linguagem cortante, mas altamente lírica, simbólica, escritura que denuncia, mas que também se desvela em desejo, em pulsão de vida, telúrica, força pujante do verbo humano. Alexandre Marino, em Exília, rende-nos, portanto, momentos de alta literatura.
A POESIA SEM FRONTEIRAS DE ANA RAMIRO
Na poesia, a palavra é um horizonte aberto de possibilidades imagéticas. A riqueza da poesia, em contraponto à contenção de palavras, é essa explosão de sentidos que brotam das sílabas, silêncios, ritmos e espaços em branco. Para medi-la, se é que é mensurável, é preciso, mais do que os olhos, abrir o coração.
A poesia de Ana Maria Ramiro é exemplar dessa linguagem sem limites, que oferece a possibilidade da transcendência na leitura. Em Fronteiras da Pele, ela traz para a condição de arte o corpo e seus elementos. E se a perspectiva do prazer, sua razão de ser, provoca a inquietação do corpo, a poesia é fruto da inquietação da alma. Não é por outra razão que o primeiro verso do poema Belzing Bug já revela a mão tateando a possibilidade do rosto, vertida em tarântula, que nesse gesto executa o preciso movimento que tem como fim a saciedade – logo, o prazer.
Sem a pretensão de desvendá-la, o melhor a fazer é mergulhar na poesia de Ana Maria Ramiro e entregar-se ao ritmo de seus versos, deixar que a minuciosa elaboração conduza a leitura. Entre as boas surpresas proporcionadas por esse exercício está o encontro de algumas palavras que se destacam das demais – como se tivessem som mais agudo ou cor mais vibrante – e que se apresentam como guias de viagem. Tais palavras, que o leitor deve assumir o risco de identificar (ou não), darão o tom das diversas sensações proporcionadas por essa entrega. E aqui é bom lembrar que, em poesia, o importante é abrir-se à sensação, mais que buscar o entendimento racional.
Ana Maria trabalha com palavras e imagens delicadamente escolhidas, com esmero e precisão, para elaborar a ideia que o poema contém. Algumas parecem ter sido inventadas especificamente para amalgamar os seus poemas. “Quadro a quadro / o tempo retrocede // descaminham / os pés / sob um solo móvel” (Abissínia).
A autora lança mão do poder das metáforas para intensificar a interação entre palavra e corpo, como no belo Linhas de fuga (“um mergulho // sistemático no fundo do aquário / em busca da escama, no hiato / da pedra, o salto / atávico”) ou em Origami urbano (“A cada vinco, mudanças / na química do asfalto // embotar o gris, romper / a lápide que se estende / sob o casco humano // céu de agapanto”).
Nesse exercício de enfrentar as fronteiras da pele, Ana Ramiro brinca de esfinge e assim se apresenta ao leitor perplexo. Mas ler poesia não é desvendar enigmas; é romper, ao lado do poeta, os limites que a ambos se apresentam, para assim se respirar a liberdade oferecida pelo voo das palavras (“bailarina no globo / da morte, o pensamento fixo / num ponto sem foco”), pelo mergulho na metáfora (“acima da sombra, um pássaro / renega casa, identidade / e se desfolha // nômade”), pelo gozo diante do encontro a realizar (“no deserto da pele (sinuosa) // uma jóia desliza / nua”).
A poesia de Ana Maria Ramiro abre possibilidades de leituras e releituras que absorvem o parceiro-leitor em redemoinho, oferecendo-lhe não respostas, mas perplexidades. Fronteiras da pele prossegue o caminho aberto em seu livro anterior, Desejos de Gaia, um tratado sobre os sagrados calores que alimentam o corpo e lhe proporcionam energia vital. Mas, se no volume de 2007 Ana Ramiro carregava em fina ironia, em Fronteiras da pele ela intensifica a “elaboração do gesto” (“reconhecer-se na fome / do tigre, // sentir seus músculos, / seu hálito, // ler o segredo / estampado // no rajado da pele”). Esse salto além faz de sua poesia uma bela aventura.
Escrevi este texto em 2009, e Ana Ramiro o publicou no blog Fronteiras da Pele, que criou para divulgar o livro que acabara de lançar. Também o site literário Conexão Maringá, que infelizmente não existe mais, o publicou. Sempre gostei muito da poesia da Ana e a poesia nos fez amigos. Ana estava morando há alguns anos em Portugal, onde o marido Dario Sensi, diplomata, ocupa cargo na Embaixada do Brasil. Ana Ramiro faleceu em Brasília, no dia 19 de julho. Uma grande perda para a poesia e os amigos. Uma homenagem é muito pouco, mas é o possível.
A poesia de Ana Maria Ramiro é exemplar dessa linguagem sem limites, que oferece a possibilidade da transcendência na leitura. Em Fronteiras da Pele, ela traz para a condição de arte o corpo e seus elementos. E se a perspectiva do prazer, sua razão de ser, provoca a inquietação do corpo, a poesia é fruto da inquietação da alma. Não é por outra razão que o primeiro verso do poema Belzing Bug já revela a mão tateando a possibilidade do rosto, vertida em tarântula, que nesse gesto executa o preciso movimento que tem como fim a saciedade – logo, o prazer.
Sem a pretensão de desvendá-la, o melhor a fazer é mergulhar na poesia de Ana Maria Ramiro e entregar-se ao ritmo de seus versos, deixar que a minuciosa elaboração conduza a leitura. Entre as boas surpresas proporcionadas por esse exercício está o encontro de algumas palavras que se destacam das demais – como se tivessem som mais agudo ou cor mais vibrante – e que se apresentam como guias de viagem. Tais palavras, que o leitor deve assumir o risco de identificar (ou não), darão o tom das diversas sensações proporcionadas por essa entrega. E aqui é bom lembrar que, em poesia, o importante é abrir-se à sensação, mais que buscar o entendimento racional.
Ana Maria trabalha com palavras e imagens delicadamente escolhidas, com esmero e precisão, para elaborar a ideia que o poema contém. Algumas parecem ter sido inventadas especificamente para amalgamar os seus poemas. “Quadro a quadro / o tempo retrocede // descaminham / os pés / sob um solo móvel” (Abissínia).
A autora lança mão do poder das metáforas para intensificar a interação entre palavra e corpo, como no belo Linhas de fuga (“um mergulho // sistemático no fundo do aquário / em busca da escama, no hiato / da pedra, o salto / atávico”) ou em Origami urbano (“A cada vinco, mudanças / na química do asfalto // embotar o gris, romper / a lápide que se estende / sob o casco humano // céu de agapanto”).
Nesse exercício de enfrentar as fronteiras da pele, Ana Ramiro brinca de esfinge e assim se apresenta ao leitor perplexo. Mas ler poesia não é desvendar enigmas; é romper, ao lado do poeta, os limites que a ambos se apresentam, para assim se respirar a liberdade oferecida pelo voo das palavras (“bailarina no globo / da morte, o pensamento fixo / num ponto sem foco”), pelo mergulho na metáfora (“acima da sombra, um pássaro / renega casa, identidade / e se desfolha // nômade”), pelo gozo diante do encontro a realizar (“no deserto da pele (sinuosa) // uma jóia desliza / nua”).
A poesia de Ana Maria Ramiro abre possibilidades de leituras e releituras que absorvem o parceiro-leitor em redemoinho, oferecendo-lhe não respostas, mas perplexidades. Fronteiras da pele prossegue o caminho aberto em seu livro anterior, Desejos de Gaia, um tratado sobre os sagrados calores que alimentam o corpo e lhe proporcionam energia vital. Mas, se no volume de 2007 Ana Ramiro carregava em fina ironia, em Fronteiras da pele ela intensifica a “elaboração do gesto” (“reconhecer-se na fome / do tigre, // sentir seus músculos, / seu hálito, // ler o segredo / estampado // no rajado da pele”). Esse salto além faz de sua poesia uma bela aventura.
Escrevi este texto em 2009, e Ana Ramiro o publicou no blog Fronteiras da Pele, que criou para divulgar o livro que acabara de lançar. Também o site literário Conexão Maringá, que infelizmente não existe mais, o publicou. Sempre gostei muito da poesia da Ana e a poesia nos fez amigos. Ana estava morando há alguns anos em Portugal, onde o marido Dario Sensi, diplomata, ocupa cargo na Embaixada do Brasil. Ana Ramiro faleceu em Brasília, no dia 19 de julho. Uma grande perda para a poesia e os amigos. Uma homenagem é muito pouco, mas é o possível.
O PRESENTE DE NILTO MACIEL
No dia 27 de julho, ao voltar para casa depois de uma ausência de duas semanas, encontrei na caixa de correspondências um envelope pardo que imediatamente identifiquei como um livro. Recebo muitos livros; alguns de amigos, outros de desconhecidos em retribuição aos que eu próprio envio. Livros viajam sem parar. Antes de abrir o envelope, verifiquei o remetente: o cearense Nilto Maciel, inquieto autor de mais de uma dezena de livros, entre romances, contos, crônicas, ensaios, poesia.
Nada de estranho, a não ser pelo fato de que Nilto Maciel faleceu no dia 29 de abril, três meses antes. Verifiquei a data de postagem do envelope: 14 de abril de 2014.
O presente que eu acabava de receber de Nilto, que morou durante muitos anos em Brasília e que ultimamente escrevia e espalhava seus livros diretamente de Fortaleza, era o volume Sôbolas manhãs, coletânea de ensaios sobre literatura, escritores, memórias e outras reflexões sempre interessantes com que presenteava os amigos a curtos intervalos. Por enquanto, não farei maiores comentários sobre o conteúdo, pois não terminei a leitura.
Dentro do livro, encontrei um bilhete digitado, rubricado com dois rabiscos e datado de 10 de abril, 20 dias antes de seu corpo ser encontrado na sala de sua casa, no bairro Monte Castelo, em Fortaleza. “A Alexandre Marino, presenteio este exemplar de Sôbolas manhãs”, li no bilhete. “Tenho dúvida de ter ou não mencionado seu nome em algum dos artigos.” E prosseguia: “Tenho certeza de ter escrito um livro de boas ideias ou, pelo menos, com o melhor dos intuitos: o de divulgar os escritores brasileiros avessos ao ‘jornalismo de resultado’, à crítica tendenciosa e aos vendedores de pedras falsas.”
Certamente permanecerá um mistério o caminho percorrido pelo livro, desde que o próprio Nilto Maciel o levou aos correios até que o apanhei na caixa de correspondências. É possível que o volume tenha ficado esquecido em algum centro de distribuição, caído atrás de uma mesa, até que, quem sabe, o espírito de Nilto cutucasse um carteiro e exigisse a entrega. Onde Nilto estiver, agradeço o cuidado. E agradeço também que ele me tenha incluído na seleta lista de “escritores avessos aos vendedores de pedras falsas”, um privilégio e tanto.
[crônica] O INFERNO
Ao anunciar os jogadores que defenderão o Brasil durante a Copa do Mundo, o técnico Luiz Felipe Scolari garantiu: “Irei com eles até o inferno.” Não cheguei a ler a lista, mas fiquei intrigado com a frase. Que inferno seria esse?
Alguns de meus ancestrais levaram os clichês bíblicos ao pé da letra. Desconfio que meus avós e minhas tias acreditavam piamente na existência do Inferno e do Paraíso, este como o lugar do júbilo eterno, suprema premiação a quem viveu uma vida voltada para o bem, a obediência a Deus e principalmente ao sacrifício, à provação, à vitória sobre as “tentações”. Tentação, no caso, englobaria quase tudo que dissesse respeito ao prazer, e aqui me vem à memória um verso do poeta inglês John Donne, traduzido por Augusto de Campos e eternizado no Brasil por Caetano Veloso: “Todo prazer provém de um corpo (como a alma sem corpo) sem vestes.” O texto no original não é exatamente assim, mas o sentido é o mesmo.
O paraíso, o prazer, o inferno. E, diante da promessa da redenção eterna, tínhamos também a ameaça do sofrimento eterno, se não resistíssemos. Aos seis anos, eu me preparava para a primeira comunhão, que diziam ser a “chegada de Deus” a meu corpo. Para me treinar, minhas tias me forçavam a “comungar” com hóstias que os padres da Igreja de Santo Antônio lhes davam, obviamente antes de “receber” a presença divina. Um dia, me engasguei e cuspi aquela massa insípida. Meu avô me encarou com olhar ameaçador: “Se você fizer isso lá na igreja, vai parar sabe onde?”, apontando o indicador para o chão, mostrando o caminho do inferno. Pobre menino de seis anos, que nem conhecia o mal do mundo.
Eu, na minha peculiar ingenuidade, acreditava, ia à missa, rezava. Fiz a primeira comunhão, engoli a hóstia direitinho, e a partir dos sete anos cumpria todos os domingos o ritual da missa. Na época, comungava-se em jejum. As missas eram muito demoradas, e normalmente eu não conseguia esperar pela hora da comunhão: morto de fome, caía desmaiado antes que o padre distribuísse o “corpo de Cristo”.
Até os 14 anos, vivi a rotina de comungar nas missas dominicais, inventando pecados para o padre sempre que passava muito tempo sem me confessar. Achava que era melhor inventar excessos que receber a hóstia com algum pecado esquecido – e ser castigado por aquele Deus barbudo com cara de mau. Eu não era muito criativo com essas invenções – “briguei com meus irmãos, desrespeitei minha mãe”, etc, etc. Ah, tinha um pecado muito interessante – “Tive maus pensamentos”. Isso significava desejar alguma garota, coisa que eu nem sabia direito o que significava, pois, afinal, sexo era assunto tabu.
O inferno é uma instituição humana, assim como o Paraíso. O poeta Dante Alighieri, nascido em Florença, cidade eterna, no século 13, percorreu o inferno, o purgatório e o paraíso, encontrou conhecidos e desconhecidos e voltou à terra para narrar sua viagem, em versos, num dos monumentos da literatura universal, A Divina Comédia. E algo que me chamou a atenção é que no Inferno de Dante não há apenas fogo. Há, por exemplo, uma lama imunda onde alguns espíritos vivem sua provação.
Pensei em tudo isso ao tomar conhecimento da frase de Scolari. E desconfio que ele não precisará ir muito longe se tiver de acompanhar seus pupilos ao inferno. O inferno está muito próximo – dele e de nós.
[Imagem: uma das ilustrações de Salvador Dali para A Divina Comédia, de Dante Alighieri]
Alguns de meus ancestrais levaram os clichês bíblicos ao pé da letra. Desconfio que meus avós e minhas tias acreditavam piamente na existência do Inferno e do Paraíso, este como o lugar do júbilo eterno, suprema premiação a quem viveu uma vida voltada para o bem, a obediência a Deus e principalmente ao sacrifício, à provação, à vitória sobre as “tentações”. Tentação, no caso, englobaria quase tudo que dissesse respeito ao prazer, e aqui me vem à memória um verso do poeta inglês John Donne, traduzido por Augusto de Campos e eternizado no Brasil por Caetano Veloso: “Todo prazer provém de um corpo (como a alma sem corpo) sem vestes.” O texto no original não é exatamente assim, mas o sentido é o mesmo.
O paraíso, o prazer, o inferno. E, diante da promessa da redenção eterna, tínhamos também a ameaça do sofrimento eterno, se não resistíssemos. Aos seis anos, eu me preparava para a primeira comunhão, que diziam ser a “chegada de Deus” a meu corpo. Para me treinar, minhas tias me forçavam a “comungar” com hóstias que os padres da Igreja de Santo Antônio lhes davam, obviamente antes de “receber” a presença divina. Um dia, me engasguei e cuspi aquela massa insípida. Meu avô me encarou com olhar ameaçador: “Se você fizer isso lá na igreja, vai parar sabe onde?”, apontando o indicador para o chão, mostrando o caminho do inferno. Pobre menino de seis anos, que nem conhecia o mal do mundo.
Eu, na minha peculiar ingenuidade, acreditava, ia à missa, rezava. Fiz a primeira comunhão, engoli a hóstia direitinho, e a partir dos sete anos cumpria todos os domingos o ritual da missa. Na época, comungava-se em jejum. As missas eram muito demoradas, e normalmente eu não conseguia esperar pela hora da comunhão: morto de fome, caía desmaiado antes que o padre distribuísse o “corpo de Cristo”.
Até os 14 anos, vivi a rotina de comungar nas missas dominicais, inventando pecados para o padre sempre que passava muito tempo sem me confessar. Achava que era melhor inventar excessos que receber a hóstia com algum pecado esquecido – e ser castigado por aquele Deus barbudo com cara de mau. Eu não era muito criativo com essas invenções – “briguei com meus irmãos, desrespeitei minha mãe”, etc, etc. Ah, tinha um pecado muito interessante – “Tive maus pensamentos”. Isso significava desejar alguma garota, coisa que eu nem sabia direito o que significava, pois, afinal, sexo era assunto tabu.
O inferno é uma instituição humana, assim como o Paraíso. O poeta Dante Alighieri, nascido em Florença, cidade eterna, no século 13, percorreu o inferno, o purgatório e o paraíso, encontrou conhecidos e desconhecidos e voltou à terra para narrar sua viagem, em versos, num dos monumentos da literatura universal, A Divina Comédia. E algo que me chamou a atenção é que no Inferno de Dante não há apenas fogo. Há, por exemplo, uma lama imunda onde alguns espíritos vivem sua provação.
Pensei em tudo isso ao tomar conhecimento da frase de Scolari. E desconfio que ele não precisará ir muito longe se tiver de acompanhar seus pupilos ao inferno. O inferno está muito próximo – dele e de nós.
[Imagem: uma das ilustrações de Salvador Dali para A Divina Comédia, de Dante Alighieri]
SÉRGIO DUBOC É COISA NOSSA!
O cantor e compositor Sérgio Duboc é um dos pioneiros do Liga Tripa, grupo e movimento poético-musical que surgiu em Brasília no início dos anos 80. Faz parte, portanto, de uma linguagem, uma cidade e um tempo emblemáticos. Brasília havia sido inaugurada há 20 anos, e portanto era uma cidade ainda em busca de identidade. O país ainda vivia tempos de ditadura e censura. E a música do Liga Tripa, que reunia artistas vindos de várias partes do país, embalou essa cultura nascida de uma experiência absolutamente nova.
Como se vê, o Liga Tripa, que já tem mais de 30 anos, só poderia ter surgido em Brasília e sua música é capítulo obrigatório na história cultural da capital brasileira, hoje uma cidade já consolidada e com excesso de problemas urbanos e políticos, portanto, a cara do Brasil.
Sérgio Duboc é parte dessa história. E será em homenagem e solidariedade a ele que músicos e poetas de Brasília se reunirão para uma grande festa no palco do Teatro dos Bancários, na próxima quarta-feira, 14 de maio. Duboc se recupera de um problema de saúde que o surpreendeu há algumas semanas, em Goiânia, e ainda vai mantê-lo no estaleiro por algum tempo.
Mas Duboc não é qualquer um e os espíritos que tentavam conduzi-lo ao "outro lado" - segundo relato dele mesmo - devem estar convencidos que pegaram o cara errado. Duboc bateu o pé, brigou, esbravejou, se segurou, disse que não iria e não foi. "Eu disse pra eles que meu lugar é aqui e daqui não sairia", conta. "Eles, quem?" "Sei lá, uns demônios que me cercaram", disse.
Agora será diferente. O palco do Teatro dos Bancários estará lotado de amigos. Será um belo show poético-musical. Além de poesia e música, o evento contará com um bazar em que serão vendidos CDs, livros e trabalhos de artistas da cidade, com renda revertida para Sérgio Duboc.
Como se vê, o Liga Tripa, que já tem mais de 30 anos, só poderia ter surgido em Brasília e sua música é capítulo obrigatório na história cultural da capital brasileira, hoje uma cidade já consolidada e com excesso de problemas urbanos e políticos, portanto, a cara do Brasil.
Sérgio Duboc é parte dessa história. E será em homenagem e solidariedade a ele que músicos e poetas de Brasília se reunirão para uma grande festa no palco do Teatro dos Bancários, na próxima quarta-feira, 14 de maio. Duboc se recupera de um problema de saúde que o surpreendeu há algumas semanas, em Goiânia, e ainda vai mantê-lo no estaleiro por algum tempo.
Mas Duboc não é qualquer um e os espíritos que tentavam conduzi-lo ao "outro lado" - segundo relato dele mesmo - devem estar convencidos que pegaram o cara errado. Duboc bateu o pé, brigou, esbravejou, se segurou, disse que não iria e não foi. "Eu disse pra eles que meu lugar é aqui e daqui não sairia", conta. "Eles, quem?" "Sei lá, uns demônios que me cercaram", disse.
Agora será diferente. O palco do Teatro dos Bancários estará lotado de amigos. Será um belo show poético-musical. Além de poesia e música, o evento contará com um bazar em que serão vendidos CDs, livros e trabalhos de artistas da cidade, com renda revertida para Sérgio Duboc.
EXÍLIA NA BIENAL DE BRASÍLIA
Nesta sexta-feira, 18, lançamento de Exília no Café Literário Jorge Ferreira na Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília.
A Livraria do Chico (estande 33, bloco A) vende Exília na Bienal de Brasília.
A Livraria do Chico (estande 33, bloco A) vende Exília na Bienal de Brasília.
SARAU POÉTICO NA BIENAL
Uma pequena história da poesia em Brasília. Organização de Jorge Amâncio e participação de toda a turma. Nesta sexta-feira, 18 de abril, a partir das 21 horas, na Arena Infantil Monteiro Lobato.
LITERATURA E INTERNET NA TV
No programa Entrelivros, da TV Brasil, uma conversa sobre literatura, internet e mercado. Foi ao ar na segunda-feira, 14 de abril, durante a 2ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília. Participação de André Giusti e deste escriba.
[crônica] ÍCONES INFANTIS
Eu devia ter no máximo três anos quando meu pai comprou seu primeiro carro, que ele chamava de Prefetinho e que só recentemente descobri que se tratava de um Ford Prefect, de fabricação norte-americana ou inglesa. Pelas pesquisas que fiz, devia ser um modelo produzido entre as décadas de 1930 e 1940, e portanto já um respeitável ancião quando meu pai o adquiriu em 1958 ou 1959.
O Prefetinho ficava estacionado diante de minha casa, na rua Lourenço de Andrade, em Passos. Era uma rua tranquila, mas já asfaltada. Recém-chegado ao mundo, me encantei com a máquina que meu pai incorporara a seu escasso patrimônio. E foi assim que me transformei em grande problema para minha mãe, pois eu queria passar o dia inteiro em seu interior, e algumas vezes a obriguei, usando os invencíveis argumentos de primogênito de três anos, a levar-me o almoço dentro do carrinho.
Na família não existem fotos do Prefetinho, a não ser uma em que ele pode ser visto pela lateral, apenas a metade da frente, imagem suficiente para identificar o modelo, graças a um relevo característico na lataria. Minha mãe está no banco dianteiro, de perfil, e eu estou no colo dela, olhando para o fotógrafo. Essa foto foi tirada com uma antiga câmera Kapsa, diante da Igreja de Santo Antônio, mais tarde demolida como tantos outros ícones da minha infância.
Imagino que a foto tenha sido feita pelo meu pai, embora a fotógrafa oficial da família fosse minha mãe. Em ocasiões especiais, geralmente viagens, ela comprava um filme, que o próprio funcionário do cinefoto colocava na Kapsa. Quando voltávamos da viagem, minha mãe fazia algumas fotos em casa, nas ruas próximas ou na Praça da Matriz, e depois mandava revelar no Foto Yokoyama, anos depois substituído pelo Simosono.
Minha mãe teve duas câmeras Kapsa. A primeira, usada para fotografar o Prefetinho, era preta. O que chamava atenção nessa câmera era que o fotógrafo tinha que segurá-la na altura da barriga, posição adequada para que a imagem fosse vista no visor. Não sei quem ensinou minha mãe a fotografar, mas ela reuniu um respeitável acervo de fotos de minha infância e de meus irmãos. Eu já era adolescente quando pela primeira vez minha mãe permitiu que eu fotografasse com a Kapsa.
Embora o Prefetinho me fascinasse, meu pai vivia furioso com o carro, que segundo ele “não saía da oficina”. Para complicar, acredito que meu pai o comprara com o objetivo maior de viajar, porque Passos era muito pequena e ele gostava de andar a pé. A cidade ficava a meio caminho entre Belo Horizonte e São Paulo, unida às duas capitais por estradas de terra quase intransitáveis. Viajar era, de fato, uma grande aventura. Lembro-me dos quilométricos lamaçais em tempos de chuva, quando era comum passarmos por uma fila de carros fora de combate, até que nós também atolássemos e mais tarde fôssemos resgatados por um jipe ou um trator.
O segundo carro de meu pai foi um Chevrolet fabricado também na década de 1940, porém maior e mais confortável. Certa vez, saímos de Passos no início da noite com destino a Belo Horizonte. O carro levava, além de mim, meus pais e meus avós maternos, além de Tia Raquelina. Numa curva, próxima a uma ponte, o carro saiu da estrada e despencou dentro do rio. Ninguém se machucou gravemente, mas poderia ter sido uma tragédia se o carro tivesse avançado mais dois metros. Fomos resgatados por um caminhoneiro que se tornou amigo da família.
Lembro-me de ter sido retirado do carro, com as roupas molhadas e tremendo de frio, e levado para o interior do caminhão. E lembro-me também de minha mãe lamentando a perda da “máquina de retratos”. Anos depois ela comprou outra, da mesma marca, mas agora de cor cinza. E continuou fazendo fotos que, embora sejam belas recordações, jamais substituirão a memória.
[história afetiva] HÁ VAGAS - OU HAVIA?
Capa da terceira edição |
A revista literária Há Vagas circulou em Brasília de setembro de 1982 a agosto de 1985, em três edições, que contaram com o apoio da Universidade de Brasília. Seus fundadores foram Armando Veloso, Chico Leite, José Adércio Leite e Paulo Joe, com a participação de Regina Ramalho, que fez o projeto gráfico da primeira edição, e um grande número de colaboradores. No início da década de 1980, o movimento literário de Brasília era muito intenso e os criadores da revista conseguiram agregar grande parte dos escritores que circulavam na cidade. Na época, a perspectiva de mudanças políticas, com o fim iminente da ditadura militar, e a capital ainda em busca de identidade, com apenas 22 anos de inaugurada, apontavam para um horizonte sem limites e muita expectativa também na cultura.
A primeira edição de Há Vagas trazia na capa um desenho que vazava para a contracapa, em que se viam todos os colaboradores da revista segurando a carteira de trabalho. Quem assinava o editorial, sob o título O homem é o lobby do homem, era o jornalista e poeta Tetê Catalão. Apesar de rico em metáforas, ainda hoje o texto não deixa dúvidas quanto à conjuntura política e econômica da época. “A pior recessão será aquela capaz de desfibrar sonho por sonho, letra por letra, carícia por carícia”, afirmava logo na primeira frase. “Em pleno desemprego nacional, afirma-se que HÁ VAGAS.” O país vivia os últimos suspiros da ditadura militar, em meio a crise econômica, mas ainda faltavam três anos para que o último presidente de fardas entregasse o poder.
Capa da primeira edição |
“Quem achar que deve, se apresente. Afinal, quem diz que você pode ou não pode é você mesmo: se a vaga é tua, vai na vaga. Abre o vago-simpático e brilha vagau no brinquedo de estar lúcido.” Tetê Catalão fechou assim o editorial, e deu gás para que alguns escritores que enviaram colaborações à revista e não foram publicados protestassem contra a “falta de vagas”. No entanto, em suas três edições a revista veiculou textos de grande qualidade literária, de autores de diversos estilos e propostas, de vários pontos do país, comprovando que as portas estavam, de fato, abertas.
Primeiro número – Um dos destaques da primeira edição de Há Vagas era o poeta Francisco Alvim, participante do movimento literário brasiliense, nome importante da poesia dos anos 70. Ele contribuiu com poemas e uma interessante entrevista, em que refletia sobre a ainda recente poesia marginal.
Entre os autores de contos, poemas e ilustrações publicados no primeiro número estão, além de seus criadores e editores, Ariosto Teixeira, Cassiano Nunes, Cesário de Sousa, Eduardo Rangel, João Borges, Jô Oliveira, Luis Eduardo Resende (Resa), Luís Martins, Paulo Andrade e Turiba.
Após a publicação do primeiro número de Há Vagas, houve uma dissidência de alguns escritores desse grupo, que se afastaram para criar a Bric-a-brac, outra revista literária de grande importância na história cultural de Brasília.
Capa da segunda edição |
Segundo número – Na capa, o artista plástico Felix Valois reproduziu graficamente uma frase poética pichada em um muro de Brasília: “Não sei como as pal-/avras/ ainda são feitas/ de silenci-os!” O segundo número da revista foi editado por Chico Leite, Armando Veloso, Domingos Pereira Netto e Alexandre Marino, com a colaboração de Paulo Joe (São Paulo) e Theophilus (Fortaleza), e edição de arte de Milton Goes, Resa, Jô Oliveira, Evandro Abreu, Renato Ferrari e Rômulo Andrade. A data de edição é primavera de 1984.
Colaboraram no segundo número, além dos editores, Adriano Espinola, Cassiano Nunes, Carlos Herculano Lopes, Evandro Abreu, Lourenço Cazarré, Nirton Venancio, Patt Raider e Luís Turiba, entre outros. Chico Leite, Armando Veloso e Alexandre Marino conduziram a entrevista desta edição, com o poeta Affonso Romano de Santanna.
Uma das curiosidades desta segunda edição foi um conto cedido pelo poeta Paulo Leminski, de título Sintomas. De Leminski também foi publicado um poema, sem título.
Marino, Chico, Domingos, Goes, Armando |
Outra curiosidade foi o poema enviado por Waly Salomão, O cólera e a febre. O poema fala de uma situação de tédio num domingo de sol. Waly teria ficado furioso ao ver a ilustração de Milton Goes para seu poema, cuja primeira estrofe trazia os versos “Um bode imundo irrompe/ (...) e perante minha pessoa a fera/ estaca e já dentro de mim se esmera/ (...)”. Na ilustração, Goes usou a imagem literal de um bode, o animal, que se transforma numa seta e fere o peito de um homem. Waly talvez não tenha compreendido que, neste caso, o bode foi a metáfora da metáfora, e o realismo reforçou a imagem figurada.
Terceiro número – Aquela que seria a última edição de Há Vagas, de agosto de 1985, foi feita por Armando Veloso, Chico Leite e Alexandre Marino, com a colaboração de Paulo Joe e Theophilus. A edição de arte ficou a cargo de Milton Goes e Chico Leite. Cristina Bastos teve importante contribuição em todo o trabalho. A imagem da capa, do fotógrafo Juan Pratginestós, mostra um casal sentado nas arquibancadas vazias do antigo anfiteatro do Parque da Cidade, cenário do lendário Concerto Cabeças, e na contracapa as mesmas arquibancadas, lotadas, ambas fotos feitas do alto.
O poeta Ferreira Gullar foi entrevistado pela jornalista Patrícia Assis. A professora Maria Duarte escreveu um ensaio sobre arte e cultura nos novos tempos que se inauguravam no país. Encartadas na revista vinham as Breves anotações para um provável manigesto, com texto final de Chico Leite, que discutiam a proposta literária dos editores da revista, voltada para uma poesia de linguagem universal, uma “viagem da pedra primitiva ao neon”, revelada nos versos de Paulo Joe: “Nem vanguarda, nem retaguarda, apenas o que o coração aguarda.”
Entre os colaboradores desta edição estavam ainda Alice Ruiz, Antonio Barreto, Guido Heleno, Nevinho Alarcão, Nilto Maciel, Paulo Leminski, Reynaldo Jardim, Thais Guimarães e Zaida Regina.
Há Vagas reuniu, em suas três edições, nomes de grande importância da literatura que se fazia na época em Brasília, publicando ainda escritores que se destacavam em outros estados por uma postura de inquietação e questionamento. Novos tempos chegavam. Há Vagas cumpriu sua parte.
O NÃO-LUGAR DA POESIA
A escritora Paula Cajaty, do Rio de Janeiro, escreve sobre meu livro de poemas Exília, na edição 165 do jornal de literatura Rascunho, de Curitiba (janeiro/2014). Leia abaixo a íntegra de seu texto.
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Muito embora tenha finalizado seu sexto livro em 2009, Alexandre Marino trabalhou em Exília durante três anos, até a sua publicação, em junho de 2013. Nestes mais de sessenta poemas, distribuídos em cinco partes (“O homem”; “O exílio”; “O amor”; “O tempo”; “A morte”), Marino realiza o deslocamento do leitor, tornando-o alheio à condição humana, em uma espécie de despertencimento do mundo.
Na verdade, para escrever poesia há mesmo essa necessidade de exilar-se, colocar-se distante e à parte — sair do lugar de conforto para olhar o mundo sob outra perspectiva. A poesia é, pois, o próprio lugar de exílio do poeta, mas um exílio voluntário, um deslocamento de tempo e lugar em que se permitem reflexões impossíveis aos que se encontram imersos no turbilhão da vida.
Exília é o lugar que não há, longe da terra que acolhe e expulsa sonhos, o vazio além da janela, o ninho diversas vezes recriado. Fica fácil, portanto, identificar a razão da repartição em cinco partes no livro do poeta mineiro: exilando-se da condição de homem, o eu-lírico se transforma em poeta; exilando-se do mundo, o poeta encontra seu lugar nesse exílio; afastando-se das paixões que regem o homem-consumidor e competidor, o poeta descobre a mansidão e eternidade do amor; e, por fim, distanciando-se da vida, efêmera, escreve sob a égide do tempo e da morte, inexoráveis e imutáveis.
Caixa de vidro
O eu-lírico de “O homem” é um deus aleijado, andarilho, criatura sem norte, viajante perdido e cigano no deserto. É náufrago de si mesmo, intruso em seu próprio habitat. O título da obra, embora não conste do dicionário, é a junção da palavra “exílio” com “Brasília”, cidade onde mora o poeta. Mas Alexandre explica que não se sente exilado em Brasília: na verdade, ele se sente exilado em qualquer cidade, pois, como na história do rio cujas águas sempre são diferentes, pessoas e cidades vão mudando com o tempo. Nós mudamos, a cidade muda e logo nos sentimos estranhos e deslocados em nosso próprio bairro.
A sensação de estranhamento, própria do efeito da leitura poética, é fruto desse auto-exílio: estranhamos o que não nos é próximo, desconfiamos daquilo que não nos é familiar, duvidamos de tudo o que muda — embora a natureza das coisas seja exatamente a mudança.
Em “O exílio”, Alexandre perscruta as condições em que esse homem, alheado de tudo e até de si mesmo, passa seus dias: “Nunca estou onde estou/ fogem-me abraços, harmonias e desalinhos”. É “terra estéril/ onde planto sonhos”, o mundo lá fora que insiste em invadir esconderijos, sol e vida que atravessam nossas celas de vidro. Como o próprio autor declara, é essencial o sentimento de desenraizamento que atormenta o poeta e explica a importância de que exista um lugar dentro de cada um de nós que possa ser esse refúgio pessoal e utópico. A poesia é, então, a ferramenta de criação do espaço mental e espiritual que salva os sentimentos do homem de um mundo inóspito e devorador.
Aliás, não é somente a poesia que promete esse lugar do sagrado e inatingível onde guardamos nossas sensibilidades, onde admiramos a rosa delicada da besta-fera ameaçadora e arredia que criamos para sobreviver: na filosofia iogue e nos estudos rosacrucianos há esse recolhimento a um outro espaço/tempo, diverso e distante do espaço/tempo do mundo. No estudo rosacruz, por exemplo, chega-se a erigir um pórtico mental que deve ser atravessado pelo aprendiz todas as vezes que inicia seu processo de meditação: o pórtico representando a entrada humilde do peregrino em um novo local, feito de silêncio, magia e beleza. Assim como poetas, iogues e rosacrucianos buscam esse auto-exílio como forma de expandir suas sensibilidades, um lugar de proteção contra barulhos, aborrecimentos, mudanças: uma caixa de vidro para guardar o que há em nós de mais precioso e frágil.
Pela filosofia iogue, através da meditação visitamos esse auto-exílio, que não é somente um lugar para entesourar nosso interior sagrado, mas lembrar de nossa própria essência, ouvir o chamado interno, ter contato com nossas verdades, e sobretudo não nos distanciarmos — em nome de necessidades materiais — de tudo aquilo que realmente precisamos para resgatar a felicidade.
A significação dos poemas de Alexandre também remete a uma espécie de exílio urbano, à falta de identidade de quem habita a urbe, metrópole sem rosto. Em suas entrelinhas, lemos a solidão compartilhada da grande cidade e a dissolução do indivíduo transformado em cliente, quando o homem é investido de condição financeira e desprovido de sua condição humana, substância lírica que insiste em resistir como flor nascida numa fenda de concreto.
Libertação
Na seção dedicada ao amor, um bem precioso e frágil, o poeta encontra histórias metafóricas, incorpóreas, perigo e beleza. Amor pode ser fantasia e longa espera, caminho imponderável do acaso, mistério impossível de enunciar, aquilo que as vozes emudecem. Amor pode ser aquarela, cheiro das tardes quase comuns, um baile de borboletas amarelas, o céu rosa enquanto guardamos algo dos pássaros apressados em busca de abrigo.
O modo singular e transgressor como o poeta lida com os poemas de “O homem” e “O exílio” cede e suaviza quando encontra “O amor”. Aqui, Alexandre descortina o primeiro poema com sua face mais cruel, camoniana: quando, impuro, tem mãos sujas, e quando, insensível, se diverte “enquanto ela chora no quarto ao lado”, reavivando a antiga “ferida que dói e não se sente”. Mas o poeta reencontra o amor divino, aquele paciente e bondoso, que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.
Nos dois últimos capítulos, “O tempo” e “A morte”, a poesia se exibe como momento de lucidez, uma forma de libertação da vida prática. A vida é “fútil fortuna, ilusão de eternidade”, pó que voa sobre um lago de águas plácidas. E a morte, animal de estimação quase palpável, é sombra do invisível, parece que dorme ou que desaparece, mas a qualquer momento volta a sorrir e nos pede companhia pela eternidade. A morte é algo que cabe numa caixa de sapatos, é a imagem da mãe sentada no alpendre, o vento nas árvores, o telhado vazio de pássaros. As metáforas de Alexandre Marino aqui são profundas, preciosas.
Na linguagem poética, uma razão sobre-humana sobrevoa toda a racionalidade que aprendemos. Na poesia, sob o signo das sensações, retiramos a máscara que nos alheia a todo o tempo de nossa real condição — fugaz, frágil, efêmera — e nos encastela entre paredes de concreto, vidro e metal.
Alexandre Marino transita com desenvoltura pela linguagem poética, aberto para todas as linguagens e estilos, dialogando com a poesia drummondiana, o lirismo de Fernando Pessoa, a melancolia de Sophia de Mello Breyner e, ao mesmo tempo, evocando a memória de obras clássicas, como A Bela e a Fera ou O corcunda de Notre Dame. Em seus poemas, o autor foge da crueza e crueldade da cidade e do cotidiano para se refugiar em sua Exília, de onde escreve com paixão, força, riqueza de sensações e uma profunda experiência de vida.
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Muito embora tenha finalizado seu sexto livro em 2009, Alexandre Marino trabalhou em Exília durante três anos, até a sua publicação, em junho de 2013. Nestes mais de sessenta poemas, distribuídos em cinco partes (“O homem”; “O exílio”; “O amor”; “O tempo”; “A morte”), Marino realiza o deslocamento do leitor, tornando-o alheio à condição humana, em uma espécie de despertencimento do mundo.
Na verdade, para escrever poesia há mesmo essa necessidade de exilar-se, colocar-se distante e à parte — sair do lugar de conforto para olhar o mundo sob outra perspectiva. A poesia é, pois, o próprio lugar de exílio do poeta, mas um exílio voluntário, um deslocamento de tempo e lugar em que se permitem reflexões impossíveis aos que se encontram imersos no turbilhão da vida.
Exília é o lugar que não há, longe da terra que acolhe e expulsa sonhos, o vazio além da janela, o ninho diversas vezes recriado. Fica fácil, portanto, identificar a razão da repartição em cinco partes no livro do poeta mineiro: exilando-se da condição de homem, o eu-lírico se transforma em poeta; exilando-se do mundo, o poeta encontra seu lugar nesse exílio; afastando-se das paixões que regem o homem-consumidor e competidor, o poeta descobre a mansidão e eternidade do amor; e, por fim, distanciando-se da vida, efêmera, escreve sob a égide do tempo e da morte, inexoráveis e imutáveis.
Caixa de vidro
O eu-lírico de “O homem” é um deus aleijado, andarilho, criatura sem norte, viajante perdido e cigano no deserto. É náufrago de si mesmo, intruso em seu próprio habitat. O título da obra, embora não conste do dicionário, é a junção da palavra “exílio” com “Brasília”, cidade onde mora o poeta. Mas Alexandre explica que não se sente exilado em Brasília: na verdade, ele se sente exilado em qualquer cidade, pois, como na história do rio cujas águas sempre são diferentes, pessoas e cidades vão mudando com o tempo. Nós mudamos, a cidade muda e logo nos sentimos estranhos e deslocados em nosso próprio bairro.
A sensação de estranhamento, própria do efeito da leitura poética, é fruto desse auto-exílio: estranhamos o que não nos é próximo, desconfiamos daquilo que não nos é familiar, duvidamos de tudo o que muda — embora a natureza das coisas seja exatamente a mudança.
Em “O exílio”, Alexandre perscruta as condições em que esse homem, alheado de tudo e até de si mesmo, passa seus dias: “Nunca estou onde estou/ fogem-me abraços, harmonias e desalinhos”. É “terra estéril/ onde planto sonhos”, o mundo lá fora que insiste em invadir esconderijos, sol e vida que atravessam nossas celas de vidro. Como o próprio autor declara, é essencial o sentimento de desenraizamento que atormenta o poeta e explica a importância de que exista um lugar dentro de cada um de nós que possa ser esse refúgio pessoal e utópico. A poesia é, então, a ferramenta de criação do espaço mental e espiritual que salva os sentimentos do homem de um mundo inóspito e devorador.
Aliás, não é somente a poesia que promete esse lugar do sagrado e inatingível onde guardamos nossas sensibilidades, onde admiramos a rosa delicada da besta-fera ameaçadora e arredia que criamos para sobreviver: na filosofia iogue e nos estudos rosacrucianos há esse recolhimento a um outro espaço/tempo, diverso e distante do espaço/tempo do mundo. No estudo rosacruz, por exemplo, chega-se a erigir um pórtico mental que deve ser atravessado pelo aprendiz todas as vezes que inicia seu processo de meditação: o pórtico representando a entrada humilde do peregrino em um novo local, feito de silêncio, magia e beleza. Assim como poetas, iogues e rosacrucianos buscam esse auto-exílio como forma de expandir suas sensibilidades, um lugar de proteção contra barulhos, aborrecimentos, mudanças: uma caixa de vidro para guardar o que há em nós de mais precioso e frágil.
Pela filosofia iogue, através da meditação visitamos esse auto-exílio, que não é somente um lugar para entesourar nosso interior sagrado, mas lembrar de nossa própria essência, ouvir o chamado interno, ter contato com nossas verdades, e sobretudo não nos distanciarmos — em nome de necessidades materiais — de tudo aquilo que realmente precisamos para resgatar a felicidade.
A significação dos poemas de Alexandre também remete a uma espécie de exílio urbano, à falta de identidade de quem habita a urbe, metrópole sem rosto. Em suas entrelinhas, lemos a solidão compartilhada da grande cidade e a dissolução do indivíduo transformado em cliente, quando o homem é investido de condição financeira e desprovido de sua condição humana, substância lírica que insiste em resistir como flor nascida numa fenda de concreto.
Libertação
Na seção dedicada ao amor, um bem precioso e frágil, o poeta encontra histórias metafóricas, incorpóreas, perigo e beleza. Amor pode ser fantasia e longa espera, caminho imponderável do acaso, mistério impossível de enunciar, aquilo que as vozes emudecem. Amor pode ser aquarela, cheiro das tardes quase comuns, um baile de borboletas amarelas, o céu rosa enquanto guardamos algo dos pássaros apressados em busca de abrigo.
O modo singular e transgressor como o poeta lida com os poemas de “O homem” e “O exílio” cede e suaviza quando encontra “O amor”. Aqui, Alexandre descortina o primeiro poema com sua face mais cruel, camoniana: quando, impuro, tem mãos sujas, e quando, insensível, se diverte “enquanto ela chora no quarto ao lado”, reavivando a antiga “ferida que dói e não se sente”. Mas o poeta reencontra o amor divino, aquele paciente e bondoso, que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.
Nos dois últimos capítulos, “O tempo” e “A morte”, a poesia se exibe como momento de lucidez, uma forma de libertação da vida prática. A vida é “fútil fortuna, ilusão de eternidade”, pó que voa sobre um lago de águas plácidas. E a morte, animal de estimação quase palpável, é sombra do invisível, parece que dorme ou que desaparece, mas a qualquer momento volta a sorrir e nos pede companhia pela eternidade. A morte é algo que cabe numa caixa de sapatos, é a imagem da mãe sentada no alpendre, o vento nas árvores, o telhado vazio de pássaros. As metáforas de Alexandre Marino aqui são profundas, preciosas.
Na linguagem poética, uma razão sobre-humana sobrevoa toda a racionalidade que aprendemos. Na poesia, sob o signo das sensações, retiramos a máscara que nos alheia a todo o tempo de nossa real condição — fugaz, frágil, efêmera — e nos encastela entre paredes de concreto, vidro e metal.
Alexandre Marino transita com desenvoltura pela linguagem poética, aberto para todas as linguagens e estilos, dialogando com a poesia drummondiana, o lirismo de Fernando Pessoa, a melancolia de Sophia de Mello Breyner e, ao mesmo tempo, evocando a memória de obras clássicas, como A Bela e a Fera ou O corcunda de Notre Dame. Em seus poemas, o autor foge da crueza e crueldade da cidade e do cotidiano para se refugiar em sua Exília, de onde escreve com paixão, força, riqueza de sensações e uma profunda experiência de vida.
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