Alguns de meus ancestrais levaram os clichês bíblicos ao pé da letra. Desconfio que meus avós e minhas tias acreditavam piamente na existência do Inferno e do Paraíso, este como o lugar do júbilo eterno, suprema premiação a quem viveu uma vida voltada para o bem, a obediência a Deus e principalmente ao sacrifício, à provação, à vitória sobre as “tentações”. Tentação, no caso, englobaria quase tudo que dissesse respeito ao prazer, e aqui me vem à memória um verso do poeta inglês John Donne, traduzido por Augusto de Campos e eternizado no Brasil por Caetano Veloso: “Todo prazer provém de um corpo (como a alma sem corpo) sem vestes.” O texto no original não é exatamente assim, mas o sentido é o mesmo.
O paraíso, o prazer, o inferno. E, diante da promessa da redenção eterna, tínhamos também a ameaça do sofrimento eterno, se não resistíssemos. Aos seis anos, eu me preparava para a primeira comunhão, que diziam ser a “chegada de Deus” a meu corpo. Para me treinar, minhas tias me forçavam a “comungar” com hóstias que os padres da Igreja de Santo Antônio lhes davam, obviamente antes de “receber” a presença divina. Um dia, me engasguei e cuspi aquela massa insípida. Meu avô me encarou com olhar ameaçador: “Se você fizer isso lá na igreja, vai parar sabe onde?”, apontando o indicador para o chão, mostrando o caminho do inferno. Pobre menino de seis anos, que nem conhecia o mal do mundo.
Eu, na minha peculiar ingenuidade, acreditava, ia à missa, rezava. Fiz a primeira comunhão, engoli a hóstia direitinho, e a partir dos sete anos cumpria todos os domingos o ritual da missa. Na época, comungava-se em jejum. As missas eram muito demoradas, e normalmente eu não conseguia esperar pela hora da comunhão: morto de fome, caía desmaiado antes que o padre distribuísse o “corpo de Cristo”.
Até os 14 anos, vivi a rotina de comungar nas missas dominicais, inventando pecados para o padre sempre que passava muito tempo sem me confessar. Achava que era melhor inventar excessos que receber a hóstia com algum pecado esquecido – e ser castigado por aquele Deus barbudo com cara de mau. Eu não era muito criativo com essas invenções – “briguei com meus irmãos, desrespeitei minha mãe”, etc, etc. Ah, tinha um pecado muito interessante – “Tive maus pensamentos”. Isso significava desejar alguma garota, coisa que eu nem sabia direito o que significava, pois, afinal, sexo era assunto tabu.
O inferno é uma instituição humana, assim como o Paraíso. O poeta Dante Alighieri, nascido em Florença, cidade eterna, no século 13, percorreu o inferno, o purgatório e o paraíso, encontrou conhecidos e desconhecidos e voltou à terra para narrar sua viagem, em versos, num dos monumentos da literatura universal, A Divina Comédia. E algo que me chamou a atenção é que no Inferno de Dante não há apenas fogo. Há, por exemplo, uma lama imunda onde alguns espíritos vivem sua provação.
Pensei em tudo isso ao tomar conhecimento da frase de Scolari. E desconfio que ele não precisará ir muito longe se tiver de acompanhar seus pupilos ao inferno. O inferno está muito próximo – dele e de nós.
[Imagem: uma das ilustrações de Salvador Dali para A Divina Comédia, de Dante Alighieri]