[estante afetiva] MEU AMIGO SILAS


Silas circula pela cidade. Atravessa um carnaval, bebe no Maletta, sobe a Amazonas, caminha pela Santos Dumont, diverte-se na feira de artesanato da Praça da Liberdade. Carrega na mochila as histórias que me levam de volta à Belo Horizonte dos anos 70, anos 80, daquelas noites em que conheci o Sérgio Fantini vendendo livros mimeografados nos bares da Augusto de Lima. Falar de Silas é falar do Sérgio e vice-versa.

Silas é alter-ego, ele mesmo ou apenas um personagem, ou tudo junto. Sérgio Fantini publicou uma pá de livros, desde os simplórios (no bom sentido) livretinhos mimeografados, com títulos inusitados (Carapuá, Ô menina, Bakunin, Palpites Ltda) até aqueles com jeitão mais sério, como este Silas, lançado em 2011 pelo selo Jovens Escribas, de Natal. Jeitão mais sério é modo de dizer; primeiro porque a literatura do Sérgio sempre foi uma coisa muito séria, segundo porque sempre teve esse dom debochado ao tratar seus personagens, como se dissesse a eles que, se a vida não é uma festa, também não pode ser levada a sério demais.


Em Silas, Sérgio Fantini assumiu de vez o perfil e o nome de um personagem que circulou com outras identidades em outros livros, mas sempre foi o mesmo. E atualizou suas histórias. Entre um e outro, não esqueceu dos amigos, que até mesmo compareceram a um festivo enterro imaginário. Do garoto desaparecido no primeiro conto, que fez uma firula e enganou o editor de uma antologia nacional, até os 30 do segundo tempo, aí estão os diversos olhares de Silas, assim como a(s) realidade(s) segundo ele – senão a mesma, a evolução da mesma.

Sérgio Fantini é velho companheiro de aventuras literárias, de velhos e novos tempos. E de tudo aquilo que diz respeito à literatura, à arte, à vida. Por isso, vira e mexe pedimos ao velho Márcio pra baixar mais uma. Não faltam velhas ou novas histórias. Algumas quase inacreditáveis, como aquele desfile das instituições de ensino no dia do aniversário da cidade de Passos (MG), onde Sérgio, como outros escritores, foi homenageado. Foi muito legal vê-lo debaixo de chuva, em plena praça, sob os aplausos da população. Grande Sérgio, grande Silas!

[história afetiva] PROTÓTIPO Nº 2

Lançamos em março de 1973 a segunda edição da revista literária Protótipo, que a essa altura da vida já reunia uma coleção de histórias, muito além daquelas narradas em contos e poemas com que preenchemos suas 70 páginas. A primeira novidade apresentada neste número era o formato, 21 x 15 cm, metade da primeira edição. Entre uma e outra, alguns de nós conquistamos prêmios literários, viajamos, conhecemos gente interessante, a literatura era um mundo novo que abria suas portas. 
 

Com capa de Antonio Barreto, assim como o primeiro número, Protótipo se apresentava como “revista literária de Passos”. O expediente informava que a revista era “idealizada e editada por jovens de 16 a 20 anos, pertencentes ao Grupoema (bando de chimpanzés criadores em busca do meteoro incandescente ou passarinhos do quintal com fome de prosa e verso)”. 

A cidade de Passos, sudoeste de Minas Gerais, parecia manter a perplexidade com que recebeu a Protótipo, que circulou pela primeira vez em dezembro de 1972. Ao abrigo da União Passense dos Estudantes Secundários (Upes), nós, aprendizes de escritores, estávamos cheios de disposição para mostrar nossa literatura aos conterrâneos, e até mesmo fora dos limites da cidade e do estado. O comércio local apoiou com patrocínio e material – Ótica Santa Luzia, Casas Buri, Bazar Americano, Casa das Máquinas, Dragão dos Pneus eram alguns dos estabelecimentos que viabilizaram a edição.

Mas a grande colaboração recebida pelo grupo foi um texto do professor de Português de maior prestígio na cidade, Francisco Soares de Melo, publicado no jornal local O Sudoeste. “Trabalho de vanguarda, procurando abrir caminho novo neste ´mare magnum´ que é o movimento artístico atual”, disse o professor Chiquito, como era conhecido, referindo-se à primeira edição de Protótipo. Ao comparar a revista passense com a Verde, de Cataguases, também em Minas, que revelara, décadas antes, escritores como Rosário Fusco e Ascânio Lopes, ele dizia que “como esta marcou época e lançou escritores (...), o mesmo poderá acontecer com Protótipo, se esses moços encontrarem apoio e orientação que merecem.” O artigo foi republicado na contracapa da segunda edição de Protótipo.

A impressão da revista era precária. Os textos eram datilografados sobre estênceis de mimeógrafo a tinta, e as ilustrações exigiam habilidade e paciência, porque não eram feitos a lápis, mas a estilete, com os quais os estênceis deviam ser perfurados. O mesmo processo dava origem aos textos. Os tipos das máquinas de escrever perfuravam as matrizes, ao se datilografar sem o uso das fitas. Esta segunda edição talvez tenha apresentado uma das melhores seleções de contos e poemas da primeira fase da revista, mas foi certamente a de pior qualidade gráfica. Tudo por culpa da minha máquina Olivetti Studio 44, novinha, que eu ganhara de presente de minha mãe e que durante anos foi minha ferramenta literária. Os tipos dela eram muito bonitos, porém pequenos, o que prejudicou a perfuração dos estênceis, tornando a impressão cheia de falhas. 


Nesta edição, nosso grupo começou a se abrir para outros colaboradores, como o paranaense Rui Werneck de Capistrano e o baiano Daniel Cruz Filho. Quando nos reunimos no salão da Upes para selecionar os textos, as cópias enviadas por Rui Werneck circularam de mão em mão, não só para leitura, mas também porque queríamos ver de perto o resultado da reprodução nas máquinas xerox. Creio que na cidade só existia uma dessas máquinas, e para fazer cópias usávamos o papel carbono.

Eis aqui a relação completa dos autores publicados nesta segunda edição da Protótipo: Antonio Barreto, Marco Tulio Costa, Alexandre Marino, Paulo Regissilva, Iran Machado, Carlos Parreira, Ricardo Donabella, Carlos Parada, Rogério Daniel, Rui Werneck de Capistrano e Daniel Dias Cruz Filho. Turma danada de boa! 


Leia outros capítulos desta história aqui ou aqui.  

[estante afetiva] POESIA EM MOVIMENTO

O poeta Alberto Bresciani fez sua estreia em livro sem pressa, como se aguardasse o tempo suficiente que o qualificaria para dialogar com o leitor. Em Incompleto movimento, lançado em 2011 pela Editora José Olympio, ele finalmente estabelece esse diálogo, com uma poesia concisa e de alta densidade. Consciente de que sempre há de faltar um gesto para completar o movimento, Bresciani  adverte, logo no início, que se é “inútil, tão inútil / esse discurso frágil // Em silêncio, todavia, / um sol oculto no corpo”.

O conflito com o tempo é matéria-prima com que Bresciani compõe seus poemas, de intensa lapidação. “Tardio ainda assim / eu me invento”, afirma em Sorte, para depois advertir que no silêncio “calo o medo e todo corte”. Entre os elementos comuns aos poemas do livro, pode-se encontrar, além do tempo, o corpo e suas extensões – que começam na casa, como ambiente, e vão até o rosto e as mãos, expressão e gesto – e a natureza com seus elementos, que ele torna sempre palpáveis – o vento, a água, os peixes, os pássaros, a luz. Além de nossas tentativas de voos, que eventualmente redundam em naufrágios.

Do início ao fim do livro, o leitor que atentar para as palavras e deixar fluir as sensações despertas pela poesia há de intuir que Bresciani busca, além e no fundo, a essência. A essência da matéria da poesia, que é a própria poesia. Essa busca está exposta naquele que é a síntese e, talvez, o melhor poema do livro, Miragem – “Somos ficção / Simulamos o invisível / e a imagem // no reflexo do espelho – ali nada há / como nada somos // Onde encontrar / a verdade / ou a real essência // desses fantoches / de nós mesmos / se os mistérios // não estão em lugar / mas no que mais fundo / escondemos?”

Alberto Bresciani divide sua coleção de poemas em quatro porções de gestos – os que transfiguram, os que iluminam, os que atordoam e os que paralisam. O movimento será sempre incompleto, mas a leitura dos poemas estabelece um diálogo em moto contínuo, entre o poeta, que o prossegue, e o leitor, que pressente a poesia e é engolido pelo redemoinho que ela provoca.

[estante afetiva] O LIVRO LIVRO

Por que, entre milhares de títulos publicados a cada semana, a cada mês, este livro se chama justamente Livro? O leitor não espere que eu responda, não quero estragar-lhe uma das surpresas deste novo romance do português José Luís Peixoto. Também há outras, além de uma qualidade que já deixou de ser surpresa: o texto lapidado como um diamante, fluente, que puxa o leitor para dentro. 
 
A edição brasileira, da Companhia das Letras, mostra na capa um grafismo que lembra os azulejos portugueses. Apesar de algumas palavras desconhecidas que certamente encontrará, o leitor haverá de conviver com um mundo que pode parecer distante, mas ao mesmo tempo guarda surpreendentes semelhanças com sua própria realidade.

 
O romance começa na década de 1940 e atravessa as seguintes até os tempos atuais, acompanhando a história de personagens que lutam para desvencilhar-se de uma prisão invisível. Encontros e desencontros, fatos que não se completam, sonhos interrompidos, acasos, silêncios – muitos são os caminhos pelos quais o autor do belíssimo romance Cemitério de pianos conduz o leitor. 

 
Josué, Ilídio, Adelaide, Cosme, Lubélia, Galopim, Libânia e outros que nem têm nome tropeçam e seguem em frente, testemunhando momentos históricos sem saber ao certo o que vivem. Contando assim, parece comum, mas o leitor há de querer sempre a página seguinte. E quem poderia contar essa história? É a pergunta que se coloca na parte final da narrativa. 

 
De um vilarejo de Portugal, fotografado pelo narrador com riqueza de detalhes, até Paris, onde alguns desses personagens completarão suas histórias, o que se vê são pequenas vidas que, ainda que nada tenham de especial, de melhor ou de pior, deixarão sua marca no mundo, que nunca mais será o mesmo. E no leitor, que fechará o Livro, mas permanecerá dentro dele, e o levará consigo.


Mais um Livro que confirma: ler José Luís Peixoto é sempre um prazer.