O NÃO-LUGAR DA POESIA

A escritora Paula Cajaty, do Rio de Janeiro, escreve sobre meu livro de poemas Exília, na edição 165 do jornal de literatura Rascunho, de Curitiba (janeiro/2014). Leia abaixo a íntegra de seu texto.

 
Muito embora tenha finalizado seu sexto livro em 2009, Alexandre Marino trabalhou em Exília durante três anos, até a sua publicação, em junho de 2013. Nestes mais de sessenta poemas, distribuídos em cinco partes (“O homem”; “O exílio”; “O amor”; “O tempo”; “A morte”), Marino realiza o deslocamento do leitor, tornando-o alheio à condição humana, em uma espécie de despertencimento do mundo.

Na verdade, para escrever poesia há mesmo essa necessidade de exilar-se, colocar-se distante e à parte — sair do lugar de conforto para olhar o mundo sob outra perspectiva. A poesia é, pois, o próprio lugar de exílio do poeta, mas um exílio voluntário, um deslocamento de tempo e lugar em que se permitem reflexões impossíveis aos que se encontram imersos no turbilhão da vida.

Exília é o lugar que não há, longe da terra que acolhe e expulsa sonhos, o vazio além da janela, o ninho diversas vezes recriado. Fica fácil, portanto, identificar a razão da repartição em cinco partes no livro do poeta mineiro: exilando-se da condição de homem, o eu-lírico se transforma em poeta; exilando-se do mundo, o poeta encontra seu lugar nesse exílio; afastando-se das paixões que regem o homem-consumidor e competidor, o poeta descobre a mansidão e eternidade do amor; e, por fim, distanciando-se da vida, efêmera, escreve sob a égide do tempo e da morte, inexoráveis e imutáveis.

Caixa de vidro

O eu-lírico de “O homem” é um deus aleijado, andarilho, criatura sem norte, viajante perdido e cigano no deserto. É náufrago de si mesmo, intruso em seu próprio habitat. O título da obra, embora não conste do dicionário, é a junção da palavra “exílio” com “Brasília”, cidade onde mora o poeta. Mas Alexandre explica que não se sente exilado em Brasília: na verdade, ele se sente exilado em qualquer cidade, pois, como na história do rio cujas águas sempre são diferentes, pessoas e cidades vão mudando com o tempo. Nós mudamos, a cidade muda e logo nos sentimos estranhos e deslocados em nosso próprio bairro.

A sensação de estranhamento, própria do efeito da leitura poética, é fruto desse auto-exílio: estranhamos o que não nos é próximo, desconfiamos daquilo que não nos é familiar, duvidamos de tudo o que muda — embora a natureza das coisas seja exatamente a mudança.

Em “O exílio”, Alexandre perscruta as condições em que esse homem, alheado de tudo e até de si mesmo, passa seus dias: “Nunca estou onde estou/ fogem-me abraços, harmonias e desalinhos”. É “terra estéril/ onde planto sonhos”, o mundo lá fora que insiste em invadir esconderijos, sol e vida que atravessam nossas celas de vidro. Como o próprio autor declara, é essencial o sentimento de desenraizamento que atormenta o poeta e explica a importância de que exista um lugar dentro de cada um de nós que possa ser esse refúgio pessoal e utópico. A poesia é, então, a ferramenta de criação do espaço mental e espiritual que salva os sentimentos do homem de um mundo inóspito e devorador.

Aliás, não é somente a poesia que promete esse lugar do sagrado e inatingível onde guardamos nossas sensibilidades, onde admiramos a rosa delicada da besta-fera ameaçadora e arredia que criamos para sobreviver: na filosofia iogue e nos estudos rosacrucianos há esse recolhimento a um outro espaço/tempo, diverso e distante do espaço/tempo do mundo. No estudo rosacruz, por exemplo, chega-se a erigir um pórtico mental que deve ser atravessado pelo aprendiz todas as vezes que inicia seu processo de meditação: o pórtico representando a entrada humilde do peregrino em um novo local, feito de silêncio, magia e beleza. Assim como poetas, iogues e rosacrucianos buscam esse auto-exílio como forma de expandir suas sensibilidades, um lugar de proteção contra barulhos, aborrecimentos, mudanças: uma caixa de vidro para guardar o que há em nós de mais precioso e frágil.

Pela filosofia iogue, através da meditação visitamos esse auto-exílio, que não é somente um lugar para entesourar nosso interior sagrado, mas lembrar de nossa própria essência, ouvir o chamado interno, ter contato com nossas verdades, e sobretudo não nos distanciarmos — em nome de necessidades materiais — de tudo aquilo que realmente precisamos para resgatar a felicidade.

A significação dos poemas de Alexandre também remete a uma espécie de exílio urbano, à falta de identidade de quem habita a urbe, metrópole sem rosto. Em suas entrelinhas, lemos a solidão compartilhada da grande cidade e a dissolução do indivíduo transformado em cliente, quando o homem é investido de condição financeira e desprovido de sua condição humana, substância lírica que insiste em resistir como flor nascida numa fenda de concreto.

Libertação

Na seção dedicada ao amor, um bem precioso e frágil, o poeta encontra histórias metafóricas, incorpóreas, perigo e beleza. Amor pode ser fantasia e longa espera, caminho imponderável do acaso, mistério impossível de enunciar, aquilo que as vozes emudecem. Amor pode ser aquarela, cheiro das tardes quase comuns, um baile de borboletas amarelas, o céu rosa enquanto guardamos algo dos pássaros apressados em busca de abrigo.

O modo singular e transgressor como o poeta lida com os poemas de “O homem” e “O exílio” cede e suaviza quando encontra “O amor”. Aqui, Alexandre descortina o primeiro poema com sua face mais cruel, camoniana: quando, impuro, tem mãos sujas, e quando, insensível, se diverte “enquanto ela chora no quarto ao lado”, reavivando a antiga “ferida que dói e não se sente”. Mas o poeta reencontra o amor divino, aquele paciente e bondoso, que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.

Nos dois últimos capítulos, “O tempo” e “A morte”, a poesia se exibe como momento de lucidez, uma forma de libertação da vida prática. A vida é “fútil fortuna, ilusão de eternidade”, pó que voa sobre um lago de águas plácidas. E a morte, animal de estimação quase palpável, é sombra do invisível, parece que dorme ou que desaparece, mas a qualquer momento volta a sorrir e nos pede companhia pela eternidade. A morte é algo que cabe numa caixa de sapatos, é a imagem da mãe sentada no alpendre, o vento nas árvores, o telhado vazio de pássaros. As metáforas de Alexandre Marino aqui são profundas, preciosas.

Na linguagem poética, uma razão sobre-humana sobrevoa toda a racionalidade que aprendemos. Na poesia, sob o signo das sensações, retiramos a máscara que nos alheia a todo o tempo de nossa real condição — fugaz, frágil, efêmera — e nos encastela entre paredes de concreto, vidro e metal.

Alexandre Marino transita com desenvoltura pela linguagem poética, aberto para todas as linguagens e estilos, dialogando com a poesia drummondiana, o lirismo de Fernando Pessoa, a melancolia de Sophia de Mello Breyner e, ao mesmo tempo, evocando a memória de obras clássicas, como A Bela e a Fera ou O corcunda de Notre Dame. Em seus poemas, o autor foge da crueza e crueldade da cidade e do cotidiano para se refugiar em sua Exília, de onde escreve com paixão, força, riqueza de sensações e uma profunda experiência de vida.
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