[hiatos] A EXPERIÊNCIA DA POESIA

Levei um tempo razoável para encontrar o título para o livro que estou lançando agora, Hiatos, publicado em São Paulo pela Editora Patuá. Ao contrário de todos os seis livros que escrevi anteriormente, desta vez o título só se definiu depois que o livro estava praticamente pronto. Cheguei a adotar cinco ou seis títulos, até encontrar o definitivo. 

“Hiato” é um termo rico e interessante, porque carrega significados amplos. Talvez o primeiro que nos ocorra seja aquele que aprendemos nos bancos escolares, nas aulas de gramática, que descreve o encontro de duas vogais pertencentes a sílabas diferentes – como é o caso da própria palavra em questão, que tem três sílabas (hi-a-to). Quando eu estava na escola, achava extremamente difícil distinguir um hiato de um ditongo, que descreve o caso contrário  união de duas ou mais vogais na mesma sílaba, como “pai” ou “muito”. A diferença é o som emitido em um ou outro caso, e portanto a distinção depende de nosso ouvido. 

Outros significados da palavra “hiato” têm em comum a ideia de interrupção ou descontinuidade. As fissuras que nos ameaçam ou nos salvam. Como disse o poeta canadense Leonard Cohen, que usei como epígrafe do livro, as rachaduras por onde entra a luz. Aquilo que nos falta, ou a experiência única da vida, que, afinal, é um hiato entre o nada e o nada. 

Os 53 poemas que formam meu novo livro abordam temas muito diversos, mas há alguma coisa em comum entre todos eles, já que a sua criação foi impulsionada pelo sentimento de sufocamento e inquietação que nos atinge a todos, nesses tempos caóticos que atravessamos – não só no Brasil. Alguns se alienam para se defender; outros se xingam nas redes sociais; outros perdem totalmente o rumo e partem para a violência, que é uma retaliação contra a humanidade. O caminho para a salvação, no meu caso, é a poesia. E não só aquela que escrevo: é também a que leio e a que me sensibiliza na música, no cinema, nas artes em geral. A poesia está em toda parte – pode ser encontrada também numa conversa entre amigos numa mesa de bar. 

A primeira parte do livro aborda uma experiência que poderia ter sido traumática, mas foi superada graças à minha autoconfiança, às pessoas próximas a mim, que me deram força, e a algumas crenças, e a literatura é uma delas. Tive que fazer uma cirurgia delicada, cujas marcas levo comigo, e transformei um pouco daqueles momentos em poesia. Foi uma experiência sem dúvida muito pessoal, íntima até. Porém, a magia da literatura é alcançar a intimidade das pessoas sem a necessidade de expor a intimidade de ninguém. E é por isso que esse tema está no livro, que uma vez publicado já não pertence a mim. 

Algumas experiências da vida são transformadoras. Trabalhar seriamente com a poesia, lutar com as palavras durante quatro anos, na tentativa de encontrar a melhor expressão, abordar temas que nos obrigam a refletir sobre o mundo, o exterior e o interior, tentar compreender por que nós, seres humanos, somos o que somos, tudo isso provoca um tsunami em nossa normalidade. Não saí ileso disso – mas saí com um novo livro, a que dei o título de Hiatos, um objeto palpável que se tornou uma criatura viva, que agora trago nas mãos. Lá está um pouco de minha vida, de meu olhar, de minha visão de mundo, das pessoas que amo, de minhas perdas e ganhos. 

[hiatos] PALAVRAS DE ANGÉLICA

Convivo com Angélica Torres Lima, desconsiderando os hiatos, há alguma coisa próxima dos 30 anos. O jornalismo nos aproximou, na redação de algum jornal da Brasília dos anos 80, e a poesia nos fez amigos. Angélica é poeta sensível, um dos nomes mais importantes da poesia construída nessas poucas décadas da formação cultural de Brasília. Por isso, fiquei tomado de orgulho ao ler a bela mensagem que ela me enviou, com suas impressões sobre meu livro recém-lançado, o Hiatos. Reproduzo abaixo e agradeço suas palavras. 

"Que belo livro, Alexandre. Hiatos é o seu melhor, para mim, até agora. Você tem a dizer e diz com a profundidade que se espera de um poeta. Mais ainda: um poeta com tempo de rua e de estrada, arenosa, pedregosa mas também interestelar. Seu duelo com o presente, o passado e o futuro dialoga com os hiatos da matéria animal, vegetal, mineral e cósmica de quem te lê, ou seja, não há pra onde correr. A identificação é flagrante. É um espelhamento do vazio, da solidão, do deserto, das ruínas, da perplexidade existencial que carregamos, sem atenuantes convincentes.

E ao final se confirma: Hiatos é um poema só, o que a meu ver é prova de maturidade poética mas também humana e cidadã – portanto, tenho que dizer isso, você fez bem em não abordar o grande momento nacional. Assim o que fica em essência é o denominador comum de uma cosmogonia partilhável, de novo ressaltando o Um que irmana leitor e poeta, essa espécie de gol do verso.

Li com admiração e prazer e te abraço com a antiguidade da nossa amizade. 

Angélica Torres Lima

[poesia] LANÇAMENTOS DE ´HIATOS´ AGENDADOS

Belo Horizonte, 16/12/2017, sábado 
Projeto Sempre um Papo 
Livraria Ouvidor Savassi 
Rua Fernandes Tourinho, 253 
A partir das 11h 

[livro] ALGUMA COISA A RESPEITO DE 'HIATOS'

Meu sétimo livro de poemas, Hiatos, dá continuidade ao exercício que venho praticando desde que entendi as infinitas possibilidades da poesia, na minha interação com o mundo e comigo mesmo. Eu costumo dizer que a poesia reforça, fortalece e aprofunda minha experiência de viver. A linguagem poética abre espaço para que as palavras adquiram uma aura de novos significados, muito além daqueles registrados nos verbetes dos dicionários, gerando sentidos e emoções muito particulares para cada leitor, assim como para o próprio autor. Penetrar no mistério e na magia da poesia, eis o meu grande barato.

Hiatos começou a surgir no momento de uma experiência pessoal intensa, daquelas que nos fazem dirigir o olhar para trás e para frente  rompendo os limites de um dia a dia em que tudo aparentemente se repete  e para nossos interiores  como é descrito metaforicamente no primeiro poema do livro. Experiências intensas são hiatos em nosso cotidiano: o mundo para para que elas aconteçam, e depois retoma seu ritmo.

Assim, a vida, que nada mais é do que um hiato entre o nada e o nada, também é feita de hiatos. O curso da História tem momentos de suspense e de vazios. O que há entre a luz e a escuridão, entre um silêncio e outro, senão hiatos? 

Hiatos é lançamento da Editora Patuá, de São Paulo. E o selo da Patuá tem um sentido da maior importância. É uma das muitas editoras de pequeno porte do país, mas tem se destacado pela ousadia, pelos autores e livros que publica e pelos prêmios que tem recebido, alguns deles de propriedade quase exclusiva das grandes editoras. A poesia não é uma mercadoria. Produzir poesia para um suposto mercado cultural é um equívoco. A Patuá não tem essa pretensão, está investindo em literatura sincera. Por isso não concorre com as grandes – corre por fora. Em seis anos de trabalho, Eduardo Lacerda e sua pequena equipe já publicaram mais de 500 livros, alguns deles vencedores ou finalistas de prêmios como Portugal Telecom, Jabuti ou Oceanos. Só tenho que agradecer à Patuá por fazer parte de seu catálogo. 

[poema] FÓTONS

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LANÇAMENTO DE HIATOS EM BRASÍLIA


Convido amigos, leitores, escritores, todo o público interessado em poesia para o primeiro lançamento de meu novo livro de poemas, Hiatos. Será realizado em Brasília, no dia 23 de agosto, quarta-feira, no Martinica Café, localizado na CLN 303, Asa Norte, a partir das 19h30. 

Hiatos é uma publicação da Editora Patuá, de São Paulo. 

Informarei oportunamente lançamentos em outras cidades. 

Conto com todos vocês. 

HIATOS

Foram quatro anos de trabalho, que se intensificou nos últimos meses. Por mais que eu estabelecesse um cronograma, ele se recusava à maturação e exigia mais trabalho. Finalmente, nos últimos dias de maio, dei a tarefa por encerrada e declarei concluído, pronto, fechado, o meu sétimo livro de poesia: Hiatos.

Composto de 53 poemas, distribuídos em seis partes, este livro dá prosseguimento à busca que venho empreendendo desde o primeiro, de 1979: a de desvendar a alma das palavras, de forma a transcender seu significado aparente e com a ajuda delas alcançar o mistério presente no vácuo, na sombra, entre rastros de corpos, hiatos humanos. 

Hiatos parte de uma experiência pessoal intensa e avança no encalço dessa criatura que, ao tentar compreender a si mesma, só poderá salvar-se pela poesia. Um ser às vezes invisível, às vezes fantasma, esfinge na metrópole, confrontando memória e amnésia, sonhando no deserto, à sombra da última árvore. 

Hiatos, a caminho.

LIBERDADE E TRANSCENDÊNCIA EM LEONARD COHEN


Suzanne conduz você a seu recanto junto ao rio. Ouvindo os barcos que partem, você quer passar a noite ao lado dela. Sabe que ela está quase louca, mas é por isso que você quer ficar lá. Quer viajar com ela, viajar às cegas, e sabe que ela confiará em você, pois você tocou seu corpo perfeito com o pensamento.  Eis alguns trechos da primeira canção de Leonard Cohen que o mundo ouviu, Suzanne, que traz algumas das principais características da obra do compositor e poeta canadense que morreu em 7 de novembro aos 82 anos. Personagens femininas ora reais, ora mitológicas; inspiração, citação e recriação de personagens e cenas bíblicas, históricas ou lendárias; erotismo às vezes velado, às vezes explícito; uma espiritualidade incontida, que parece filtrar o olhar de Cohen sobre o mundo e sobre as coisas, por mais profano e vulgar que ele às vezes tente parecer. Mas a poesia elaborada de Leonard Cohen é pura transcendência, um daqueles sinais emitidos pelos grandes artistas de que a humanidade já é capaz de galgar um degrau acima da barbárie e da incivilidade.

Ao morrer, com a mesma discrição que adotou em importantes momentos de sua vida, Leonard Cohen deixou uma coleção de canções e poemas que guardam segredos ainda a descobrir, palavras a compreender, belezas a eclodir lentamente. O artista arredio dos primeiros anos, compositor meio a contragosto, se transformou aos poucos em personagem instigante, ansioso por compreender o ser humano de seu tempo, dotado de olhar sempre atento para a História, dono de uma elegância vinda desde o berço e incontestável carisma. Seu primeiro disco, Songs of Leonard Cohen, lançado em 1968, já com a idade de um veterano da música – 34 anos – chegou depois de quatro livros de poemas e dois romances, o que lhe garantia considerável cacife para construir belas letras, numa época em que a música pop e o rock portavam a voz da juventude.

Nascido em Montreal, no Canadá, de tradicional família judia, Leonard foi educado para ser um homem de negócios de sucesso, mas ele se encantou com a poesia. É desses desvios que certas criaturas experimentam e jamais voltam a ser as mesmas. Por volta de 15 anos conheceu a obra do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, morto na guerra civil em 1936, e se encantou. Aos 21, publicou seu primeiro livro de poemas, Let us compare mythologies, bem recebido pela crítica, que destacou a maturidade de seus versos e o domínio da linguagem. 

O livro já trazia elementos comuns da poesia de Cohen. A influência da cultura judaica, muito presente em toda a sua formação, não só pela educação que recebeu como também pela história da família e o ambiente comunitário onde cresceu, e uma certa perplexidade diante do inexorável. O poema Lovers remete ao Holocausto, ao descrever o amor de um casal num cenário em ruínas e entre as chamas de um forno. “Quando as chamas se erguiam/ ele tentou beijar seus seios ardentes/ enquanto ela queimava no fogo”. Outro poema, Rites, descreve a morte do pai, Nathan Cohen, ao lado da família e em ambiente tipicamente judeu. 

NOVE ANOS – A perda do pai, quando Leonard tinha 9 anos, guarda uma relação simbólica com sua poesia. Após a cerimônia do velório, ele pegou no armário uma gravata do pai, e nela escondeu um pequeno pedaço de papel, onde havia escrito algo. Em seguida, a enterrou no jardim de casa, sob a neve. Ao longo dos anos escavou o quintal por várias vezes, na esperança de encontrar o bilhete. Foi a primeira coisa que escreveu na vida, e dizia que sua poesia era a procura daquelas palavras, de que não conseguia se lembrar.  

Nove anos também era a idade do garoto Isaac, da história bíblica sobre o sacrifício de Abraão, a quem Deus pediu o sacrifício do filho. É recontada por Cohen na canção Story of Isaac. “A porta abriu devagar/ e meu pai entrou/ eu tinha nove anos/ seus olhos brilhavam/ e sua voz era muito fria./ Disse, tive uma visão/ e você sabe, sou forte e santo/ tenho que fazer o que me mandaram./ (...)/ Subimos a montanha/ eu, correndo, ele a caminhar/ levando o machado de ouro./ (...) Vocês que se erguem sobre as crianças/ com suas lâminas afiadas e sangrentas/ não estiveram lá antes/ quando me deitei sobre a montanha/ e a mão de meu pai tremia/ com a beleza da palavra.” 

Esta canção está no segundo disco de Leonard Cohen, Songs from a room, em que gravou algumas preciosidades de sua carreira, como Bird on the wire. Outra canção de grande beleza incluída no segundo álbum é Seems so long ago, Nancy, com que Leonard homenageia uma jovem de Montreal, que se matou quando seu filho ilegítimo foi tomado dela. “Parece que faz tanto tempo/ nenhum de nós era forte/ Nancy usava meias verdes/ e dormiu com todo mundo/ (...) /Acho que se apaixonou por nós/ Em mil novecentos e sessenta e um/ (...)/ Parece tanto tempo/ um quarenta e cinco contra a cabeça/ um telefone fora do gancho/ (...)/ Na solidão da noite/ quando você está frio e sonolento/ pode ouvi-la falar livremente/ que está feliz porque você veio”. No verso final, no original em inglês, Cohen faz um trocadilho, já que “she´s happy that you´ve come” pode se referir tanto à chegada de uma pessoa quanto ao orgasmo no ato sexual. 

A julgar pela história que o poema conta, se verdadeira em parte ou no todo, pode-se considerar que Leonard teria feito sexo com a jovem, e assim a teria homenageado para expiar possível sentimento de culpa? Mulheres que passaram pela sua vida, como Suzanne Verdal, Marianne Ilen e a cantora Janis Joplin se tornaram personagens das canções. Marianne, a bela norueguesa que Leonard abordou num mercado da ilha de Hidra, na Grécia, em 1969, e morreu em julho deste ano, foi talvez a maior paixão de sua vida, ainda que as paixões tenham sido sempre efêmeras. Ela é a personagem de So long, Marianne, composta quando viviam juntos e gravada no primeiro álbum de Cohen. “Adeus, Marianne/ é tempo de começarmos/ a rir, a chorar, a chorar, a rir/ sobre tudo isso outra vez/ Sabe que amo viver com você/ mas você me faz esquecer de tanta coisa/ eu me esqueço de rezar pelos anjos/ e os anjos se esquecem de rezar por nós”. 

Janis Joplin não tem seu nome citado, mas é de conhecimento público que ela é a mulher de Chelsea Hotel #2, uma das mais populares – e belas – canções de Cohen. Está em seu quarto álbum, New skin for the old ceremony, e começa com a descrição de uma cena de sexo: “Eu me lembro de você no Chelsea Hotel/ falava com contundência e doçura/ você me chupava na cama desfeita/ enquanto as limusines esperavam na rua.” E prossegue: “Você se foi, e nunca a ouvi dizer/ preciso de você, não preciso de você/ e toda essa conversa// Eu me lembro de você no Chelsea Hotel/ você era famosa, seu coração uma lenda/ disse-me que preferia homens bonitos/ mas para mim abriria uma exceção”. 

PERSONA – Leonard Cohen construiu uma persona que divide espaço com ele próprio no imaginário de seus fãs. Em seus poemas é visível a presença desse personagem sombrio e atormentado, mas generoso e solidário, inconformado com as injustiças, que parece indicar o amor como o remédio contra a desesperança. Leonard está sempre lá, no cerne de suas canções, e talvez isso o torne tão próximo. Essa presença é marcante especialmente em uma canção, Famous blue raincoat, que deixa no ar uma pergunta: que história teria motivado esse poema em forma de carta, em que chama alguém de “meu irmão, meu assassino” e diz que o perdoa? Na gravação original, do terceiro álbum, Songs of love and hate, a canção-carta termina com a assinatura “L. Cohen”. 

Rica em personagens femininas, a obra de Leonard Cohen tem ainda mulheres lendárias ou bíblicas, como Betsabá, amante do Rei Davi, e Dalila, esposa de Sansão, ambas da Bíblia. Elas aparecem de passagem em sua mais conhecida canção, Hallelujah, lançada no sétimo álbum, Various positions, e gravada por mais de 500 intérpretes em todo o mundo. “Ouvi dizer sobre um acorde secreto/ que Davi tocava e agradava a Deus/ mas você não se importa com música, não é?/ ela vai assim/ a quarta, a quinta/ a menor cai, a maior sobe/ o rei confuso cantando aleluia// sua fé era forte, mas precisava de provas/ você a viu banhando-se no terraço/ sua beleza e a luz da lua derrubaram você/ ela o amarrou na cadeira da cozinha/ quebrou seu trono/ cortou seu cabelo/ e dos seus lábios arrancou um aleluia/.” 

Joana d´Arc é outra personagem mítica que ganha vida na música de Cohen, numa versão poética para a história da guerreira francesa, declarada herege por um tribunal da Igreja em 1431 e condenada à fogueira, depois de lutar pela França contra as tropas inglesas. No poema de Cohen, o fogo é o macho sedutor, a quem ela se entrega como se se entregasse a um amor. Joan of Arc foi originalmente gravada em Songs of love and hate

Reverente aos grandes poetas, Leonard Cohen se inspira em um poema do grego Konstantinos Kavafis, O deus abandona Antônio, para escrever uma de suas obras-primas, Alexandra leaving. Kavafis parte de uma cena lendária, a batalha entre os exércitos de Otávio Augusto e de Marco Antônio e Cleópatra, vencida pelo primeiro, para promover uma reflexão existencial sobre as perdas e os sonhos frustrados. Já Leonard toma o nome da cidade de Alexandria, citada por Kavafis, para nomear a musa de seu poema, Alexandra, e refletir sobre a perda do amor. É indispensável destacar a belíssima interpretação de Sharon Robinson no álbum Leonard Cohen live in Dublin, composto de três CDs e um DVD, gravado já no final da última turnê de Cohen, em setembro de 2013. 

BUDISMO – O poema que deu origem a essa canção, assim como vários outros que compõem seu décimo álbum, Ten new songs, faz parte do Book of longing, livro lançado por Cohen após sair do monastério budista Mont Baldy, nos arredores de Los Angeles, nos Estados Unidos, onde viveu isolado durante cinco anos. O CD é compartilhado com Sharon Robinson, que compôs as melodias e fez os arranjos. Sharon também o acompanhou, como backing vocal, nas suas duas últimas turnês, entre 2008 e 2013. 

Antes de se isolar no monastério, Cohen havia lançado I´m your man, em 1988, e, quatro anos depois, The future, um álbum mais político, que parecia trazer à tona sua face mais atormentada. Na faixa título ele cita o muro de Berlim, Hiroshima e tragédias de nosso tempo para dizer: “Eu vi o futuro, ele é assassinato”. Desta canção também faz parte um belo verso de Cohen: “Vi nações crescendo e caindo/ Ouvi suas histórias, ouvi todas elas/ mas o amor é o único mecanismo de sobrevivência”. Em Anthem, ele diz: “Toque os sinos que ainda podem tocar/ Esqueça as oferendas perfeitas/ em tudo há uma fissura/ por onde a luz se aventura” (em tradução livre). 

A este se seguiu um ano de turnê, e o Canadá lhe prestou homenagens e prêmios por seus discos e livros. Mas Cohen arrumou uma mochila e foi comemorar seu sexagésimo aniversário, em setembro de 1994, no mosteiro de Mont Baldy. De lá só saiu em 1999, para a Índia, onde foi estudar com o mestre Ramesh Balsekar, com quem passou pouco menos de um ano. Entre esses estudos, meditação zen e rituais judaicos, Cohen prosseguia sua busca interior e tentava afastar suas tendências depressivas, mas o que parece tê-lo curado de fato foi a música e a poesia. 

Em sua última década de vida, Cohen se dedicou à criação. A partir de 2004, quando completou 70 anos, ele gravou quatro álbuns de estúdio, com canções inéditas – Dear heather (2004), Old ideas (2012), Popular problems (2014) e You want it darker (2016) – e mergulhou de cabeça em longas turnês, que promoveram seu reencontro com um público cada vez maior e mais reverente. 

Já no disco de 2004 ele refletia sobre sua relação com as mulheres: “Por causa de algumas canções/ em que falo de seus mistérios/ mulheres têm sido muito gentis/ com minha idade avançada// criam um lugar secreto/ em suas vidas agitadas/ e me levam para lá/ desnudam-se de várias formas/ e dizem: ‘olhe para mim, Leonard/ olhe para mim uma última vez’”. 

DESPEDIDA – Seu próprio nome volta a entrar na letra de Going home, que abre o álbum Old ideas: “Amo falar com Leonard/ ele é um esportista e um pastor de ovelhas/ é um bastardo preguiçoso/ que vive dentro de um terno”. Quando lançou esse disco, Cohen estava encerrando sua última turnê, em que parecia, finalmente, sereno e em paz consigo mesmo. Nas casas de espetáculos sempre superlotadas, com milhares de fãs reverentes, ele parecia dirigir-se a um grupo de amigos próximos que o rodeavam, como nas primeiras vezes em que cantou em ambientes universitários no Canadá ou Estados Unidos. 

Seu último álbum, You want it darker, é claramente uma despedida, embora seus fãs tenham resistido a vê-lo dessa forma ao longo dos 17 dias que separaram seu lançamento e a morte do compositor. O CD foi para as lojas no dia 21 de outubro de 2016, exatamente um mês depois de Cohen completar 82 anos. Em duas canções, Cohen repete o verso “estou fora do jogo”. Na faixa título, que abre o disco, aparece o coro da Congregação Shaar Hashomayim, da sinagoga que Cohen frequentava na infância, e seu vocalista, Gideon Zelemayer. Assim Cohen fechava o ciclo, o que não o impediu de cantar também uma de suas belas canções de amor: “Se o sol perdesse a luz/ e vivêssemos uma noite sem fim/ e nada mais pudéssemos sentir/ seria assim que o mundo me pareceria/ se eu não tivesse seu amor/ para torná-lo real”. 

Dos seus primeiros anos em Montreal até sua morte em Los Angeles, da solidão dos nove anos até os últimos momentos ao lado do filho, Adam Cohen, que produziu seu último álbum, Leonard Cohen foi o que ele próprio descreveu naquela que considerava sua mais simbólica canção, Bird on the wire, criada no início dos anos 1970, quando vivia na ilha grega de Hidra de forma quase edênica, entre o sol, o mar, as canções, a poesia, as mulheres, os amigos. “Como um pássaro no fio/ como um bêbado numa cantoria à meia-noite/ eu vou tentando ao meu jeito ser livre”. A poesia e a música fizeram de Leonard Cohen um homem livre. Às vezes como um pássaro, às vezes embriagado pela arte com que engrandeceu o mundo. 
  
Artigo publicado no jornal Estado de Minas, 16/12/2016

Foto: Dominique Issermann

Leia poemas e canções de Cohen na postagem anterior

ALGUNS POEMAS DE LEONARD COHEN


Rites
Bearing gifts of flowers and sweet nuts/ the family came to watch the eldest son,/ my father; and stood about his bed/ while he lay on a blood-sopped pillow,/ his heart half rotted/ and his throat dry with regret./ And it seemed so obvious, the smell so present,/ quite so necessary,/ but my uncles prophesied wildly,/ promising life like frantic oracles;/ and they only stopped in the morning,/ after he had died/ and I had begun to shout.

Ritos 
Trazendo flores e doces castanhas /a família veio assistir o filho mais velho,/ 
meu pai; e ficou ao lado da cama,/ ele deitado sobre um travesseiro ensanguentado,/ seu coração enfraquecido/ e sua garganta seca de arrependimentos./ Tudo parecia tão óbvio, o cheiro tão presente,/ quase necessário,/ mas meus tios profetizavam loucamente,/ prometendo a vida como frenéticos oráculos, / e só pararam ao amanhecer,/ depois que ele morreu/ e eu comecei a gritar. 
De Let us compare mythologies 
Famous blue raincoat 
It's four in the morning, the end of December/ I'm writing you now just to see if you're better/ New York is cold, but I like where I'm living/ There's music on Clinton Street all through the evening./ I hear that you're building/ your little house deep in the desert/ You're living for nothing now,/ I hope you're keeping some kind of record.// Yes, and Jane came by with a lock of your hair/ She said that you gave it to her /That night that you planned to go clear/ Did you ever go clear?// Ah, the last time we saw you you looked so much older// Your famous blue raincoat was torn at the shoulder// You'd been to the station to meet every train// And you came home without Lili Marlene// And you treated my woman to a flake of your life/ And when she came back she was nobody's wife.// Well I see you there with the rose in your teeth/ One more thin gypsy thief/ Well I see Jane's awake/ she sends her regards.// And what can I tell you my brother, my killer/ What can I possibly say?/ I guess that I miss you, I guess I forgive you/ I'm glad you stood in my way./ If you ever come by here, for Jane or for me/ Your enemy is sleeping, and his woman is free./ Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes/ I thought it was there for good so I never tried./ And Jane came by with a lock of your hair/ She said that you gave it to her/ That night that you planned to go clear/ Sincerely, L. Cohen 

A famosa capa de chuva azul 
São quatro da manhã, final de dezembro/ escrevo-lhe para saber se está melhor/ New York está fria, mas gosto de onde vivo/ Há música na rua Clinton por toda a noite/ ouvi falar que está construindo/ sua casinha no fundo do deserto/ Você vive para nada agora/ Espero que esteja escrevendo um diário//  Jane trouxe uma mecha de seu cabelo/ ela disse que você lhe deu de presente/ naquela noite que você planejou escapar/ Você alguma vez escapou?// Ah, a última vez em que nos vimos você parecia tão velho/ sua famosa capa de chuva azul estava puída no ombro/ você esteve na estação à espera dos trens/ e voltou para casa sem Lili Marlene// Você tratou minha mulher como um pedaço de sua vida/ e quando ela voltou não era esposa de ninguém.// Bem, vejo você com uma rosa entre os dentes/ mais um ladrão cigano/ vejo que Jane está acordada/ ela manda cumprimentos.// O que posso dizer, meu irmão, meu assassino/ acho que sinto sua falta, acho que o perdoo/ fico feliz por ter entrado em meu caminho/ se um dia passar por aqui/ por Jane ou por mim/ saiba que seu inimigo está dormindo/ e a mulher está livre/ sim, obrigado por afastar dos olhos dela o sofrimento/ pensei que estava lá por bem/ então nunca tentei.// E Jane trouxe uma mecha de seu cabelo/ ela disse que você lhe deu de presente/ naquela noite que você planejou escapar/ Sinceramente, L. Cohen. 


De Songs of love and hate

Joan of Arc
Now the flames they followed Joan of Arc/ as she came riding through the dark,/ no moon to keep her armour bright,/ no man to get her through this very smoky night./ She said, "I'm tired of the war,/ I want the kind of work I had before,/ a wedding dress or something white/ to wear upon my swollen appetite."// Well, I'm glad to hear you talk this way,/ you know I've watched you riding every day/ and something in me yearns to win/ such a cold and lonesome heroine./ "And who are you?" she sternly spoke/ to the one beneath the smoke./ "Why, I'm fire," he replied,/ "And I love your solitude, I love your pride."// "Then fire, make your body cold,/ I'm going to give you mine to hold,"/ saying this she climbed inside/ to be his one, to be his only bride./ And deep into his fiery heart/ he took the dust of Joan of Arc,/ and high above the wedding guests/ he hung the ashes of her wedding dress.// It was deep into his fiery heart/ he took the dust of Joan of Arc,/ and then she clearly understood/ if he was fire, oh then she must be wood./ I saw her wince, I saw her cry,/ I saw the glory in her eye./ Myself I long for love and light,/ but must it come so cruel, and oh so bright? 

Joana d´Arc 
As chamas perseguiram Joana d´Arc/ enquanto ela cavalgava na escuridão/ sem lua para fazer brilhar sua armadura/ sem homem para conduzi-la pela noite enfumaçada/ Ela disse, ‘estou cansada da guerra/ quero o tipo de trabalho de antes/ um vestido de casamento ou algo branco/ que cubra minha profunda fome’// Bem, estou feliz de ouvi-la falar assim/ sabe que a acompanho todos os dias/ e alguma coisa em mim anseia a conquista/ de tão fria e solitária heroína/ ‘E quem é você’, ela disse ríspida/ para o outro no meio da fumaça/ ‘Sou o fogo’, ele respondeu/ amo sua solidão, amo seu orgulho// ‘Então, fogo, esfrie seu corpo/ dou-lhe o meu para você envolver’/ dizendo assim ela se atirou/ para ser sua única noiva/ e lá no fundo de seu coração em chamas/ ele tomou as cinzas de Joana d´Arc/ e acima dos convidados da festa/ ele pendurou seu vestido de noivado feito cinzas// Então ela viu com clareza/ se ele era fogo, ela era madeira// Eu vi sua dor/ eu a vi chorar/ eu vi a glória em seus olhos/ eu mesmo desejo amor e luz/ mas será preciso ser tão cruel, e tão brilhante? 


De Songs of love and hate

You want it darker
If you are the dealer/ Iam out of the game/ If you are the healer/ I'm broken and lame/ If thine is the glory/ Then mine must be the shame/ You want it darker/ We kill the flame// Magnified and sanctified/ Be Thy Holy Name/ Vilified and crucified/ In the human frame/ A million candles burning/ For the help that never came/ You want it darker/ We kill the flame// Hineni Hineni/ I'm ready, my Lord// There's a lover in the story/ But the story is still the same/ There's a lullaby for suffering/ And a paradox to blame/ But it's written in the scriptures/ And it's not some idle claim/ You want it darker/ We kill the flame// They're lining up the prisoners/ The guards are taking aim/ I struggled with some demons/ They were middle-class and tame/ Didn't know I had permission/ To murder and to maim/ You want it darker/ We kill the flame// Hineni Hineni/ I'm ready, my Lord.

Você quer mais escuro
Se você dá as cartas/ estou fora do jogo/ se você é o curandeiro/ estou manco e quebrado/ se sua é a glória/ minha deve ser a vergonha/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Magnífico e santificado/ pelo seu Sagrado Nome/ difamado e crucificado/ pela mão humana/ um milhão de velas queimando/ pela ajuda que nunca veio/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Hineni Hineni*/ Estou pronto, senhor// Há um amante nessa história/ mas a história é sempre a mesma/ Há uma canção de ninar para o sofrimento/ e um paradoxo a culpar/ mas está nas escrituras/ não é uma afirmação vazia/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Eles enfileiram os prisioneiros/ os guardas estão apontando/ eu luto com alguns demônios/ eles eram de classe média e mansos/ não sabia que me era permitido/ matar e mutilar/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Hineni Hineni*/ Estou pronto, senhor.

*Hineni – expressão hebraica que pode ser traduzida por “Eis-me aqui”, no sentido de se colocar totalmente à disposição. 


De You want it darker

Alexandra leaving 
Suddenly the night has grown colder./ The god of love preparing to depart./ Alexandra hoisted on his shoulder,/ They slip between the sentries of the heart.// Upheld by the simplicities of pleasure,/ They gain the light, they formlessly entwine;/ And radiant beyond your widest measure/ They fall among the voices and the wine.// It's not a trick, your senses all deceiving,/ A fitful dream, the morning will exhaust -/ Say goodbye to Alexandra leaving./ Then say goodbye to Alexandra lost.// Even though she sleeps upon your satin;/ Even though she wakes you with a kiss./ Do not say the moment was imagined;/ Do not stoop to strategies like this.// As someone long prepared/ for this to happen,/ Go firmly to the window. Drink it in./ Exquisite music. Alexandra laughing./ Your firm commitments tangible again.// And you who had the honor of her evening,/ And by the honor had your own restored -/ Say goodbye to Alexandra leaving;/ Alexandra leaving with her lord.// Even though she sleeps upon your satin;/ Even though she wakes you with a kiss./ Do not say the moment was imagined;/ Do not stoop to strategies like this.// As someone long prepared for the occasion;/ In full command of every plan you wrecked -/ Do not choose a coward's explanation/ that hides behind the cause and the effect.// And you who were bewildered by a meaning;/ Whose code was broken, crucifix uncrossed -/ Say goodbye to Alexandra leaving./ Then say goodbye to Alexandra lost.

Alexandra de partida
De repente a noite ficou mais fria./ O deus do amor se preparando para partir./ Alexandra foi alçada pelo ombro,/ E passaram pelas sentinelas do coração.// Seguros pela simplicidade do prazer,/ alcançam a luz e sem forma se enlaçam/ E mais radiantes do que sua maior medida,/ eles caem entre as vozes e o vinho.// Não é um truque, sua razão enganada,/ um sonho incerto que a manhã esgotará –/ Diga adeus a Alexandra, que parte./ Diga adeus a Alexandra que se perde. // Mesmo que ela durma sobre seu cetim;/ mesmo que ela te acorde com um beijo./ Não diga que isso é fruto da imaginação;/ não se entregue a pretextos como esse.// Como se houvesse se preparado para isso,/ vá com firmeza à janela. Aproveite o momento./ Música linda. Alexandra ri./ Seus compromissos palpáveis outra vez.// E você que teve a honra de seu anoitecer,/ E assim pode restaurar sua própria honra,/ Diga adeus a Alexandra que parte./ Alexandra que parte com seu senhor.// Como se tivesse se preparado para a ocasião,/ No comando de cada plano que você arruinou –/ Não escolha uma explicação covarde/ Que se esconde por trás da causa e do efeito.// E você que ficou desorientado com o significado,/ cujo código foi quebrado, crucifixo descruzado/ Diga adeus a Alexandra que parte./ Diga adeus a Alexandre que se perde. 


De Ten new songs / Book of longing 

Foto: Dominique Issermann / Pinterest