Cidade abstrata


Depois de uma visita a Passos, o espírito da cidade me acompanha. Minha porção poeta projeta seu arqueolhar pelas novas e velhas ruas, sobrados, jardins, outros olhares. Minha porção repórter quer saber o que acontece. Uma e outra percorrem velhos e novos passos de mãos dadas. Ao redor, uma cidade antiga e nova, fiel companheira, desconhecida, arrogante. Tento me reconciliar com uma e outra. O chão da antiga rodoviária me recolhe e oferece espaço a mim e àqueles que querem saber o que o velho menino pensa pela cabeça do novo homem, ou o que o homem velho vê pelos olhos do antigo menino. Eternos amigos dividem poesia, sensações, idéias, memórias, vinhos e cervejas. Novos amigos me emocionam. A cidade ao redor: a Praça do Rosário promete recuperar a beleza da velha fonte luminosa. A Antônio Carlos mais agradável para o sobe e desce. A Igreja da Matriz, o jardim, lindos como sempre. Mas a praça envelhece. A arquitetura, identidade da cidade, já não é a mesma. Onde se esconde sua história? Entulhos são rugas, edifícios modernos são manifestações geriátricas de uma cidade que delira. A cidade não pára. A idade da cidade não é a idade dos homens. Rejuvenesce se há respeito pela História. Ao perder a memória, perde o viço. A cidade é para toda a gente. E toda a gente quer felicidade, conforto, prazer, beleza, cultura. Minha porção repórter busca saber e compreender. Minha porção poeta quer brincar. As palavras são brinquedo e ofício. Poesia, liberdade e emoção. O reencontro com a cidade sonhada, guardada na memória, na utopia do desejo. Em versos, imagens, paralelepípedos. A realidade não é apenas o que se vê. O futuro é a mistura do ontem com o hoje. O primeiro homem que aqui pisou é cidadão passense, seus passos e sua voz permanecem na sonoridade urbana, reverberam no toque do sino que se ouve nas velhas fotografias e no silêncio desta madrugada.

Volta a Passos


Voltar à minha cidade, Passos, é sempre um prazer. Desta vez, quando o objetivo foi apresentar aos meus conterrâneos um livro do qual a cidade é ao mesmo tempo cenário e personagem, o prazer foi dobrado. No sábado, fiz o lançamento de Arqueolhar na Casa da Cultura. Lá estavam estudantes, velhos amigos e um público atento e curioso, com quem conversei sobre minha experiência como poeta e jornalista. Uma das surpresas foi a simpática participação de Arlete Porto, Gilda Parenti, Graça Santana Garcia, Sandra Parenti e Clélia Monteiro Carvalho, que fizeram emocionante e emocionada leitura de poemas do Arqueolhar (foto). Foi inesquecível. Nas próximas postagens, mais informações sobre o evento.

Em Passos

Estarei em Passos neste sábado para lançar Arqueolhar. A festa acontecerá na Casa da Cultura, na Praça do Rosário, começando com um bate-papo com os estudantes de Comunicação da UEMG às 18h30 e em seguida coquetel de apresentação do livro. Conto com a presença de todos os amigos, parentes, conhecidos, ex-colegas de escola e povo em geral. E aí está, para quem não tem o prazer de conhecer, a histórica e simpática Igrejinha da Penha, em Passos. Quem a encontrar na capa de Arqueolhar, ganha um autógrafo!

Poesia e contemplação

O que há de melhor na paisagem? O próprio gesto de contemplar, o integrar-se à essência daquilo que se esparrama perante nossos olhos. Assim é a poesia - um ato de contemplação, um derrame de imagens despertadas por nossa imaginação e memória. A transição dos sinais gráficos da escrita para particulares paisagens se faz enquanto nossos olhos percorrem os versos, ou enquanto a voz amiga os decodifica em sons e palavras. A poesia tem o poder, quase mágico, de provocar essa interação entre poeta e leitor. O primeiro traduz para o papel a sua emoção, seu ponto de vista sobre o mundo; o segundo recria o poema a partir de sua sensibilidade. Assim, a poesia é um jogo de cumplicidade e afinidade, ainda que momentâneas, entre o criador-poeta e o criador-leitor. Ambos atuam em sintonia e, assim, completa-se o poema. O mergulho do leitor na poesia que o envolve e lhe desperta todos os sentidos é um momento extremamente feliz. Alcançar a poesia é gratificante, mas é atividade que exige talento, sensibilidade e sabedoria, virtudes freqüentemente presentes no interior do indivíduo, mas nem sempre disponíveis para aflorar. Essa interação entre dois universos distintos é fruto de um diálogo atemporal e silencioso. Nenhum poeta é grande sem um grande leitor, assim como nenhuma paisagem será bela se não houver quem saiba contemplá-la.

Antonio Olinto gostou do livro

Matéria publicada pelo escritor Antonio Olinto em sua coluna
na
Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, nesta terça-feira, 2 de maio.

O sereno domínio do verbo

É na poesia principalmente que a literatura brasileira atinge seu ponto mais alto. O ponto em que estiveram Drummond, Jorge de Lima, Quintana, Cassiano, Cecília, Bandeira. Repito: poesia é, neste País, das coisas mais vivas e mais avançadas que existem. Volta e meia, poeta novo começa a fazer versos e a sacudir a mesmice dos estilos. Ou poetas já conhecidos alcançam pontos mais altos no exprimir o talvez inexprimível.

O mais evidente exemplo desse permanente renascer, de uma linha, e de outra, e de outra, é o do poeta Alexandre Marino, cujo livro "Arqueolhar" reúne poemas que, num desdobramento de temas, numa experimentação verbal própria, numa retração de sons e numa explosão silábica cheia de significados, atinge um nível de poesia que o situa entre o que de melhor tem o verso brasileiro do momento.

No livro de Alexandre Marino, predominam a rua, a árvore, a fruta, um pente, uma escova de dentes, uma xícara, a montanha, o quarto, a pedra, muitas vezes a pedra, que espera, contempla, acompanha tudo e aceita as mais diversas possibilidades nua verdadeira poesia do possível.

Veja-se de que maneira obriga o poeta a que a rua nos acompanhe, no belo poema "Esta rua", de que cito 11 versos: "Esta rua te percorre/ e faz de teus passos exílio./ Esta rua te caminha/ e vigia,/ define teus limites/ e espaços,/ e de tua saudade/ te alimenta."

Quase no final do poema, que é belamente longo, diz: "Vaga nesta rua a tua alma/ ao redor da fogueira/ que te devora os ossos".

Além de sabedoria vocabular, revela o estilo de Alexandre Marino uma extraordinária elasticidade rítmica. Alguns de seus versos dão a impressão de que podem ser lidos ao contrário ou tomados em qualquer ponto, pois o ritmo como que parte dali e se integra em nova unidade. Atente-se para o sereno domínio do poeta sobre seus símbolos, suas realidades, suas palavras.

O poeta multiplica os lugares do mundo, já que dentro da casa há outra casa, e outra, e outra, com outros quartos e incontáveis cômodos, entre corredores e labirintos passagens subterrâneas numa completa reconstrução dos espaços de ontem, que ainda são os espaços de hoje. Os poemas são todos dedicados ao menino, o menino de ontem que não mudou e continua vivendo o momento. Assim:

"Lá vai o menino
e o homem invisível
que o acompanha,
feito de sua própria sombra
a jorrar-lhe das entranhas."


Dois temas visíveis do poeta - o menino e o espanto - poderia ser fixado num "espanto do menino", diante das coisas todas, diante do preto velho mais feliz do mundo que um dia não mais se achava lá. Diz o verso: "Não imaginava que morrer fosse enorme."

Na realidade, "Arqueolhar" é uma história do Brasil, com suas jabuticabas, seus palhaços, seus circos, onde a trapezista flutua e os malabaristas fazem malabarismos - e é, assim, a historia do País, a história de uma infância, a história de um tempo, que o poeta levanta em versos, numa luta pelo aperfeiçoamento de uma capacidade de percepção.

Para isto, precisa o poeta de uma entrega total, absoluta, de si mesmo às palavras que viram versos, uma entrega cromo a do sacerdote, como a do eremita. E precisa ser forte para enfrentar a pedra, que lá está sempre, medida tranqüila das coisas.

Eis o final de seu poema "Pedra de amolar": "Um dia, nos escombros do futuro,/ em certo altar abandonado,/ com paredes e entulhos/ de um alpendre, um terraço/ ossos, restos, rastros sobre a terra,/ irremediavelmente oculta/ ou apenas insepulta,/ lá estará a pedra/ insone,/ a recordar, sem saudade,/ um regato, um leito de rio,/ uma borda de serra."

Não hesito em colocar Alexandre Marino, com este "Arqueolhar", entre os grandes poetas do Brasil. A originalidade de seus temas, o bom e forte equilíbrio de seus versos, seu grave e necessário respeito pelas suas memórias, por inventar uma literatura para cada poema. Há um tipo de poesia que é matéria verbal, vocal, oral, visível, signo, sinal, e é no ritmo que a matéria se forma e ganha contorno. Fazendo poesia com palavras, conscientemente com palavras, o bojo vocabular de Alexandre Marino é de extraordinária riqueza.