VITÓRIA SOBRE O NADA

O jornalista e poeta Ariosto Teixeira viveu longos anos no fio da navalha, mas era ali mesmo que ele colhia sua energia para viver. E era dali que tirava inspiração para seus notáveis poemas, carregados de um lirismo seco, que atingiam o leitor - ou ouvinte - diretamente na alma.

Portanto, não poderia ter sido diferente o que aconteceu na noite desta terça-feira, 26, no Café Martinica, quando colegas e amigos de Ariosto prestaram-lhe inesquecível homenagem. Mais de 200 pessoas lotaram as dependências do Café para ouvir, com reverência, admiração e respeito, durante quase duas horas, os poemas de Ariosto, a maioria retirados do livro Poemas do front civil (Editora 7 Letras, RJ, 2006).

Sob o mote "O poema é minha vitória sobre o nada", verso de Ariosto, um grupo de poetas com quem ele dividiu o palco do Martinica, no projeto Palavra Solta, fizeram leituras emocionadas de seus poemas. Participaram Luís Turiba, Nicolas Behr, Carla Andrade, Angélica Torres, Paulo José Cunha, além deste que lhes escreve. A viúva de Ariosto, Solange, e seu filho mais novo, João Manuel, fecharam o recital com a apresentação de poemas inéditos.

"Meu pai fazia muito esforço para vir aqui recitar poemas para vocês", revelou João Manuel, referindo-se a eventos de que Ariosto participou - o Palavra Solta e os recitais da Bienal Internacional de Poesia de Brasília, realizada em setembro de 2008. "Ele ensaiava em casa para dizer os poemas da melhor maneira possível."

HOMENAGEM A ARIOSTO TEIXEIRA


O niilista medroso

Ariosto Teixeira

Às vezes você se pergunta
Olhando o rosto no espelho
Se o reflexo é verdadeiro
Ou se a verdade é o corpo
Parado no meio do banheiro

Você acha que sabe bem o que é
Você acha que sabe bem o que quer
Você acha que sabe quem você é

Mas você sente medo
Medo de não ser você no espelho
Medo de ser mero reflexo
Do outro que consigo parece

Você não tem medo de sexo
Você gosta de sexo
Você sonha com sexo
Você procura fazer muito sexo

Sexo à distância
Sem beijo sem fluido
Higiênico e sem lirismo
Seguro como sexo com prostituta
Você de frente ela de costas
Ela por cima de costas
Você por baixo de costas deitado

É que você tem medo
Do ataque de um vírus complexo
Medo de gravidez
Medo de se apaixonar irremediavelmente
Medo de perder o controle
Medo de assumir o controle
Medo de que tudo enfim faça nexo

Você acende e apaga o cigarro
Com medo de pegar câncer de pulmão
Medo de apagar a luz
Medo de acender a luz
Medo de desligar o alarme
Medo de abrir o portão
Medo de ladrão policial pivete
Medo de colisão
De atropelamento
De ataque do coração

Medo de padre
Da certeza cristã absoluta
Da democracia liberal
Da esquerda latina
Medo da nova direita francesa
Medo do presidente americano
Medo da falta de medo do terrorista muçulmano
Medo de ser fragmentado por um raio da Al Qaeda

Medo da China capitalista
De milho transgênico
De buraco negro
De carne vermelha
Medo da falta de limite da física quântica
Do aquecimento global
Da inteligência artificial
De velocidade acima do permitido
De remédio de quinta geração
Da globalização
Do fim da globalização
Da falta de sentido

Medo de que Deus provavelmente não exista
De não haver outra vida
Você tem medo de ficar sozinho
Sem ninguém nem final feliz

Ah mas você confia no amor
O terno e doce amor
Do homem pela mulher
Do homem por outro homem
Da mulher por outra mulher
Do homem pelos animais
Da humanidade pela natureza
Você confia no amor das criancinhas

Você pensa nessas coisas
E por um instante
Acha que nada está perdido
Que o amor salvará o mundo
O amor romântico como no cinema
Como em um soneto de Shakespeare
Apesar da podridão no reino terrestre
Mas quanto tempo dura o amor
Antes de se dissolver em tédio
15 minutos uma tarde inteira uma noitada?

Você odeia sentir isso assim tão sentimentalmente
Mas é impossível ser de outro modo
É preciso agarrar-se a algo
Não ter medo de que o vazio
Tenha se espalhado em todos os quadrantes

O fato indiscutível é que você tem medo
Medo muito medo
De ficar vivo durante o inverno nuclear

Você principalmente tem medo
Do que um dia vai fazer
Quando ao anoitecer
O seu rosto tiver desaparecido do espelho do banheiro
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O poeta e jornalista Ariosto Teixeira será homenageado nesta terça-feira, 26, no Café Martinica (CLN 303, Asa Norte, Brasília), a partir de 21h. O Café Martinica foi palco do Palavra Solta, um programa de leitura de poesia que teve em Ariosto um dos mais fortes participantes. Prestam essa homenagem os amigos que com ele conviveram e tiveram o privilégio de ouvir suas palavras. Pois foram as palavras suas infalíveis aliadas, que o fortaleceram e lhe deram coragem. Seu livro Poemas do front civil é uma incontestável prova de que a poesia foi uma inseparável companheira nos momentos mais difíceis.

2010 COMEÇA COM UM TIRO

As tragédias que abriram o novo ano estão em todos os jornais, nas TVs, na internet e nas mesas de bar. Então voltemos nossa atenção para uma foto publicada nos portais de informação na primeira semana de janeiro. A foto é objetiva e nada esconde: um agente da Polícia Rodoviária Federal descarrega sua arma sobre um boi indefeso.

Observe a foto
que ilustra este texto, e atente para o olhar quase humano do animal. Ele sabe que está frente a frente com a morte.


E o policial?
Ele executa o boi como se cumprisse uma tarefa burocrática, como se puxasse com a enxada uma pedra para desobstruir uma pista do asfalto.


O infeliz animal
estava sendo transportado por um caminhão, que tombou na rodovia BR-040 no dia 6 de janeiro. Não era uma fera em postura de ataque. Era um animal inofensivo perdido no meio do asfalto.


O que se deve ler na foto
não é a presteza com que um servidor público eliminou o risco de acidentes, numa rodovia que já estava sofrendo com as chuvas.


O que chama a atenção
é a frieza do policial, é a arrogância de um sujeito armado, que maneja a arma como se fosse um instrumento para colocar as coisas em seus lugares, como se a arma tivesse o poder de devolver o mundo à normalidade.

[Foto de Cristiano Couto, jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte]