[estante afetiva] À BEIRA DE QUASE NADA

Os personagens de Sérgio Fantini parecem viver numa comunidade onde todos têm muito em comum. Estão sempre na pindaíba, mas encaram a dureza da vida com bom-humor; andam à toa pela cidade; tomam cerveja em botecos pé-sujo; comem um pastel; esperam ônibus de madrugada, gostam de filosofar enquanto esperam passar a chuva. E, no entanto, quando essas figurinhas comuns circulam pelas páginas dos livros de Fantini, há sempre alguma coisa fora do comum para acontecer. E, mesmo que não aconteça, a gente prossegue na leitura até o fim.

Qual é o segredo? Em Novella, seu livro lançado recentemente pela Jovens Escribas, de Natal, a lição está posta. Por que Novella? – ele responde num prefácio que mais se parece uma peça de ficção. Você pode até pensar que ele está mesmo enrolado com processos judiciais, mas desconfie. Sérgio Fantini já enganou até a comissão editorial de uma grande editora, ao enviar-lhes um conto em forma de carta – eles acharam que era mesmo uma carta e publicaram seu conto com nome trocado. É uma história divertida, se quiser saber os detalhes, peça a ele que lhe conte. 

Novella começa com duas histórias sobre personagens muito comuns, tipo aqueles que parecem nada fazer que valha uma história, mas depois Fantini começa a plantar umas armadilhas no caminho do leitor. Em Sua, ele mostra que em pouco mais de duas páginas é capaz de transformar uma figura absolutamente fútil numa boa personagem, ou em personagem de uma boa história. Em Daqui pra frente, ele invoca Wander Piroli para construir um mini-conto instigante. Mão certíssima.

Há outras histórias assim; não vou falar de todas. Mas é preciso falar de Praia da Estação, um manifesto pela liberdade, pela alegria e pela vida que ele transforma em texto poético, e de Dorinha, uma historinha feliz vivida por personagens simples, não simplórios, que parece advertir o leitor que tudo aquilo que ele almeja para sua aposentadoria é uma grande bobagem. No final, vem a história mais longa, Muito silêncio (por nada), mas essa eu vou deixar engatilhada para o leitor encerrar o livro. Vamos dizer, Maria, que a vida é feita de equívocos, mas sempre nos resta a fantasia.

MARX HAMLET BERMAN MARINO


Uma análise do escritor W. J. Solha sobre o livro de poemas Exília:
 
"  Marx diz sobre a época em que viveu, no Manifesto de 1848, que TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR, frase que se tornou título de uma obra bem mais recente, de Marshall Berman, em cujo prefácio se lê:

São todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança — de autotransformação e de transformação do mundo em redor — e pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

“Todos”, ele diz. Shakespeare, venerado por Marx, faz Hamlet se lamentar, ante a situação que vive (conforme tradução de Luís I, de Portugal):

Ultimamente, nem sei por que, perdi toda a minha alegria, renunciei a toda a especie de exercicio; e sinto na alma uma tal tristeza, que esta maravilhosa machina, a terra, me parece um esteril promontorio, este esplendido docel, o céu, esse magnifico firmamento suspenso sobre nossas cabeças, essa abobada sumptuosa, onde brilha o oiro de innumeras estrellas, tudo me parece um infecto monturo de vapores pestilentes.

E eis o “clima” de Exília, conforme seus melhores versos:

A cidade
é o lado de fora dos muros do cemitério.

(Definição de cidade, pág. 49)

Este é meu corpo (que) a cada retorno a ancestrais paisagens
descobre jamais ter estado lá.

(Amálgama, pág. 52)

Se nem meus limites
dão forma ao que sou,
onde procurar
o que não sou?

Infinitos Limites, pág. 60)

Quando me acerco da cidade sonhada
não está lá

(A cidade Sonhada, pág. 65)

Nunca estou onde estou.
(A cidade Sonhada, 65)

Atônito nada
sempre à espera.

(Nenhuma Nuvem, 67)

Homens perdidos entre lapsos de memória.
(Brasília sob a Neve, 68)

Correndo atrás do sonho que acabou.
(London sweet Londres, 71)

Criatura sem norte,
inventa perfídias,
sonhos e fábulas,
e diante da morte
erige catedrais
onde perde a alma.

(Dia das Caças, pág. 26)

Paredes nada sustentam,
não há imagem no espelho.

(Desconstrução, 102)

Aqui houve uma cidade.
(Desconstrução, 104)

E eis o seu momento mais Hamlet-Marx-Berman:

Há o cosmo, o universo,
e no entanto
todo o concreto se desvanece.

(O Velho Poeta, 107)

Nesse contexto, só a arte salva. Porque os poemas guardam/ o que outras vozes / emudecem. (Aquarela, 87)

Há um momento em que as luzes se apagam
e tudo se ilumina:
as razões incompreensíveis,
o caminho dos acasos,
a ordem do universo,
e os mistérios
impossíveis de enunciar.

(Cenário ao Fim da Tarde, 81)

Daí A luta por um lugar/ no poema.
(Palavras, 74)

"

À DERIVA NA CIDADE

As cidades guardam segredos em seus caminhos. As cidades e suas erosões, cicatrizes, feridas, cansaços. As cidades e suas memórias, visões, sombras e clareiras. A cidade e suas artérias, seu sangue, poeira, fragmentos, desejos. Carícias e agressões. Riquezas e misérias. Imagens e miragens.

Grafitti de José Augusto Iowa
Deixar o olhar se perder à deriva nessas cidades que se multiplicam dentro da cidade. No sábado, 17, um grupo de pessoas vai percorrer o centro de Goiânia com o espírito aberto para essa cidade que é de cada um e é de ninguém. Uma cidade inventada por um olhar pessoal. É a Deriva Fotográfica do Bem. O objetivo é descobrir a cidade imaginária de cada um. Vamos nos encontrar no coreto da Praça Cívica, às 8h, para a partir daí recriar em imagens a cidade que se expuser (ou se esconder) aos nossos olhos. 

Na sexta-feira, 16, vamos conversar sobre o que será, o que não será, o que poderá ser essa expedição que espera apenas a surpresa. Participarei de um bate-papo com a arquiteta Marcia Metran e o fotógrafo Helio de Oliveira, quando tentaremos convergir nossas visões pessoais sobre a cidade e tentar compreendê-la sob o olhar da arquitetura, da fotografia e da poesia. Será no Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (UFG), a partir das 20h.  

Vou apresentar aos participantes da Deriva o meu livro Exília, criado a partir do sentimento de desenraizamento que atormenta o artista e o cidadão comum e que representa a tentativa de explicar esse lugar que só existe dentro de cada um de nós, como um refúgio pessoal e utópico. E tentar compreender a poesia como ferramenta para criar espaços mentais e espirituais que nos salvem de um mundo inóspito e devorador. 

A Deriva nasceu em 2008 como disciplina do curso de Arquitetura da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e depois passou a acontecer de maneira informal, sob a coordenação do arquiteto e professor Braúlio Vinícius Ferreira. Os inscritos doam litros de leite para a Missão Pão e Vida, entidade que apoia moradores de rua e dependentes de drogas. As imagens e textos que resultarem dessa experiência serão publicados no site da Deriva