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LIBERDADE E TRANSCENDÊNCIA EM LEONARD COHEN


Suzanne conduz você a seu recanto junto ao rio. Ouvindo os barcos que partem, você quer passar a noite ao lado dela. Sabe que ela está quase louca, mas é por isso que você quer ficar lá. Quer viajar com ela, viajar às cegas, e sabe que ela confiará em você, pois você tocou seu corpo perfeito com o pensamento.  Eis alguns trechos da primeira canção de Leonard Cohen que o mundo ouviu, Suzanne, que traz algumas das principais características da obra do compositor e poeta canadense que morreu em 7 de novembro aos 82 anos. Personagens femininas ora reais, ora mitológicas; inspiração, citação e recriação de personagens e cenas bíblicas, históricas ou lendárias; erotismo às vezes velado, às vezes explícito; uma espiritualidade incontida, que parece filtrar o olhar de Cohen sobre o mundo e sobre as coisas, por mais profano e vulgar que ele às vezes tente parecer. Mas a poesia elaborada de Leonard Cohen é pura transcendência, um daqueles sinais emitidos pelos grandes artistas de que a humanidade já é capaz de galgar um degrau acima da barbárie e da incivilidade.

Ao morrer, com a mesma discrição que adotou em importantes momentos de sua vida, Leonard Cohen deixou uma coleção de canções e poemas que guardam segredos ainda a descobrir, palavras a compreender, belezas a eclodir lentamente. O artista arredio dos primeiros anos, compositor meio a contragosto, se transformou aos poucos em personagem instigante, ansioso por compreender o ser humano de seu tempo, dotado de olhar sempre atento para a História, dono de uma elegância vinda desde o berço e incontestável carisma. Seu primeiro disco, Songs of Leonard Cohen, lançado em 1968, já com a idade de um veterano da música – 34 anos – chegou depois de quatro livros de poemas e dois romances, o que lhe garantia considerável cacife para construir belas letras, numa época em que a música pop e o rock portavam a voz da juventude.

Nascido em Montreal, no Canadá, de tradicional família judia, Leonard foi educado para ser um homem de negócios de sucesso, mas ele se encantou com a poesia. É desses desvios que certas criaturas experimentam e jamais voltam a ser as mesmas. Por volta de 15 anos conheceu a obra do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, morto na guerra civil em 1936, e se encantou. Aos 21, publicou seu primeiro livro de poemas, Let us compare mythologies, bem recebido pela crítica, que destacou a maturidade de seus versos e o domínio da linguagem. 

O livro já trazia elementos comuns da poesia de Cohen. A influência da cultura judaica, muito presente em toda a sua formação, não só pela educação que recebeu como também pela história da família e o ambiente comunitário onde cresceu, e uma certa perplexidade diante do inexorável. O poema Lovers remete ao Holocausto, ao descrever o amor de um casal num cenário em ruínas e entre as chamas de um forno. “Quando as chamas se erguiam/ ele tentou beijar seus seios ardentes/ enquanto ela queimava no fogo”. Outro poema, Rites, descreve a morte do pai, Nathan Cohen, ao lado da família e em ambiente tipicamente judeu. 

NOVE ANOS – A perda do pai, quando Leonard tinha 9 anos, guarda uma relação simbólica com sua poesia. Após a cerimônia do velório, ele pegou no armário uma gravata do pai, e nela escondeu um pequeno pedaço de papel, onde havia escrito algo. Em seguida, a enterrou no jardim de casa, sob a neve. Ao longo dos anos escavou o quintal por várias vezes, na esperança de encontrar o bilhete. Foi a primeira coisa que escreveu na vida, e dizia que sua poesia era a procura daquelas palavras, de que não conseguia se lembrar.  

Nove anos também era a idade do garoto Isaac, da história bíblica sobre o sacrifício de Abraão, a quem Deus pediu o sacrifício do filho. É recontada por Cohen na canção Story of Isaac. “A porta abriu devagar/ e meu pai entrou/ eu tinha nove anos/ seus olhos brilhavam/ e sua voz era muito fria./ Disse, tive uma visão/ e você sabe, sou forte e santo/ tenho que fazer o que me mandaram./ (...)/ Subimos a montanha/ eu, correndo, ele a caminhar/ levando o machado de ouro./ (...) Vocês que se erguem sobre as crianças/ com suas lâminas afiadas e sangrentas/ não estiveram lá antes/ quando me deitei sobre a montanha/ e a mão de meu pai tremia/ com a beleza da palavra.” 

Esta canção está no segundo disco de Leonard Cohen, Songs from a room, em que gravou algumas preciosidades de sua carreira, como Bird on the wire. Outra canção de grande beleza incluída no segundo álbum é Seems so long ago, Nancy, com que Leonard homenageia uma jovem de Montreal, que se matou quando seu filho ilegítimo foi tomado dela. “Parece que faz tanto tempo/ nenhum de nós era forte/ Nancy usava meias verdes/ e dormiu com todo mundo/ (...) /Acho que se apaixonou por nós/ Em mil novecentos e sessenta e um/ (...)/ Parece tanto tempo/ um quarenta e cinco contra a cabeça/ um telefone fora do gancho/ (...)/ Na solidão da noite/ quando você está frio e sonolento/ pode ouvi-la falar livremente/ que está feliz porque você veio”. No verso final, no original em inglês, Cohen faz um trocadilho, já que “she´s happy that you´ve come” pode se referir tanto à chegada de uma pessoa quanto ao orgasmo no ato sexual. 

A julgar pela história que o poema conta, se verdadeira em parte ou no todo, pode-se considerar que Leonard teria feito sexo com a jovem, e assim a teria homenageado para expiar possível sentimento de culpa? Mulheres que passaram pela sua vida, como Suzanne Verdal, Marianne Ilen e a cantora Janis Joplin se tornaram personagens das canções. Marianne, a bela norueguesa que Leonard abordou num mercado da ilha de Hidra, na Grécia, em 1969, e morreu em julho deste ano, foi talvez a maior paixão de sua vida, ainda que as paixões tenham sido sempre efêmeras. Ela é a personagem de So long, Marianne, composta quando viviam juntos e gravada no primeiro álbum de Cohen. “Adeus, Marianne/ é tempo de começarmos/ a rir, a chorar, a chorar, a rir/ sobre tudo isso outra vez/ Sabe que amo viver com você/ mas você me faz esquecer de tanta coisa/ eu me esqueço de rezar pelos anjos/ e os anjos se esquecem de rezar por nós”. 

Janis Joplin não tem seu nome citado, mas é de conhecimento público que ela é a mulher de Chelsea Hotel #2, uma das mais populares – e belas – canções de Cohen. Está em seu quarto álbum, New skin for the old ceremony, e começa com a descrição de uma cena de sexo: “Eu me lembro de você no Chelsea Hotel/ falava com contundência e doçura/ você me chupava na cama desfeita/ enquanto as limusines esperavam na rua.” E prossegue: “Você se foi, e nunca a ouvi dizer/ preciso de você, não preciso de você/ e toda essa conversa// Eu me lembro de você no Chelsea Hotel/ você era famosa, seu coração uma lenda/ disse-me que preferia homens bonitos/ mas para mim abriria uma exceção”. 

PERSONA – Leonard Cohen construiu uma persona que divide espaço com ele próprio no imaginário de seus fãs. Em seus poemas é visível a presença desse personagem sombrio e atormentado, mas generoso e solidário, inconformado com as injustiças, que parece indicar o amor como o remédio contra a desesperança. Leonard está sempre lá, no cerne de suas canções, e talvez isso o torne tão próximo. Essa presença é marcante especialmente em uma canção, Famous blue raincoat, que deixa no ar uma pergunta: que história teria motivado esse poema em forma de carta, em que chama alguém de “meu irmão, meu assassino” e diz que o perdoa? Na gravação original, do terceiro álbum, Songs of love and hate, a canção-carta termina com a assinatura “L. Cohen”. 

Rica em personagens femininas, a obra de Leonard Cohen tem ainda mulheres lendárias ou bíblicas, como Betsabá, amante do Rei Davi, e Dalila, esposa de Sansão, ambas da Bíblia. Elas aparecem de passagem em sua mais conhecida canção, Hallelujah, lançada no sétimo álbum, Various positions, e gravada por mais de 500 intérpretes em todo o mundo. “Ouvi dizer sobre um acorde secreto/ que Davi tocava e agradava a Deus/ mas você não se importa com música, não é?/ ela vai assim/ a quarta, a quinta/ a menor cai, a maior sobe/ o rei confuso cantando aleluia// sua fé era forte, mas precisava de provas/ você a viu banhando-se no terraço/ sua beleza e a luz da lua derrubaram você/ ela o amarrou na cadeira da cozinha/ quebrou seu trono/ cortou seu cabelo/ e dos seus lábios arrancou um aleluia/.” 

Joana d´Arc é outra personagem mítica que ganha vida na música de Cohen, numa versão poética para a história da guerreira francesa, declarada herege por um tribunal da Igreja em 1431 e condenada à fogueira, depois de lutar pela França contra as tropas inglesas. No poema de Cohen, o fogo é o macho sedutor, a quem ela se entrega como se se entregasse a um amor. Joan of Arc foi originalmente gravada em Songs of love and hate

Reverente aos grandes poetas, Leonard Cohen se inspira em um poema do grego Konstantinos Kavafis, O deus abandona Antônio, para escrever uma de suas obras-primas, Alexandra leaving. Kavafis parte de uma cena lendária, a batalha entre os exércitos de Otávio Augusto e de Marco Antônio e Cleópatra, vencida pelo primeiro, para promover uma reflexão existencial sobre as perdas e os sonhos frustrados. Já Leonard toma o nome da cidade de Alexandria, citada por Kavafis, para nomear a musa de seu poema, Alexandra, e refletir sobre a perda do amor. É indispensável destacar a belíssima interpretação de Sharon Robinson no álbum Leonard Cohen live in Dublin, composto de três CDs e um DVD, gravado já no final da última turnê de Cohen, em setembro de 2013. 

BUDISMO – O poema que deu origem a essa canção, assim como vários outros que compõem seu décimo álbum, Ten new songs, faz parte do Book of longing, livro lançado por Cohen após sair do monastério budista Mont Baldy, nos arredores de Los Angeles, nos Estados Unidos, onde viveu isolado durante cinco anos. O CD é compartilhado com Sharon Robinson, que compôs as melodias e fez os arranjos. Sharon também o acompanhou, como backing vocal, nas suas duas últimas turnês, entre 2008 e 2013. 

Antes de se isolar no monastério, Cohen havia lançado I´m your man, em 1988, e, quatro anos depois, The future, um álbum mais político, que parecia trazer à tona sua face mais atormentada. Na faixa título ele cita o muro de Berlim, Hiroshima e tragédias de nosso tempo para dizer: “Eu vi o futuro, ele é assassinato”. Desta canção também faz parte um belo verso de Cohen: “Vi nações crescendo e caindo/ Ouvi suas histórias, ouvi todas elas/ mas o amor é o único mecanismo de sobrevivência”. Em Anthem, ele diz: “Toque os sinos que ainda podem tocar/ Esqueça as oferendas perfeitas/ em tudo há uma fissura/ por onde a luz se aventura” (em tradução livre). 

A este se seguiu um ano de turnê, e o Canadá lhe prestou homenagens e prêmios por seus discos e livros. Mas Cohen arrumou uma mochila e foi comemorar seu sexagésimo aniversário, em setembro de 1994, no mosteiro de Mont Baldy. De lá só saiu em 1999, para a Índia, onde foi estudar com o mestre Ramesh Balsekar, com quem passou pouco menos de um ano. Entre esses estudos, meditação zen e rituais judaicos, Cohen prosseguia sua busca interior e tentava afastar suas tendências depressivas, mas o que parece tê-lo curado de fato foi a música e a poesia. 

Em sua última década de vida, Cohen se dedicou à criação. A partir de 2004, quando completou 70 anos, ele gravou quatro álbuns de estúdio, com canções inéditas – Dear heather (2004), Old ideas (2012), Popular problems (2014) e You want it darker (2016) – e mergulhou de cabeça em longas turnês, que promoveram seu reencontro com um público cada vez maior e mais reverente. 

Já no disco de 2004 ele refletia sobre sua relação com as mulheres: “Por causa de algumas canções/ em que falo de seus mistérios/ mulheres têm sido muito gentis/ com minha idade avançada// criam um lugar secreto/ em suas vidas agitadas/ e me levam para lá/ desnudam-se de várias formas/ e dizem: ‘olhe para mim, Leonard/ olhe para mim uma última vez’”. 

DESPEDIDA – Seu próprio nome volta a entrar na letra de Going home, que abre o álbum Old ideas: “Amo falar com Leonard/ ele é um esportista e um pastor de ovelhas/ é um bastardo preguiçoso/ que vive dentro de um terno”. Quando lançou esse disco, Cohen estava encerrando sua última turnê, em que parecia, finalmente, sereno e em paz consigo mesmo. Nas casas de espetáculos sempre superlotadas, com milhares de fãs reverentes, ele parecia dirigir-se a um grupo de amigos próximos que o rodeavam, como nas primeiras vezes em que cantou em ambientes universitários no Canadá ou Estados Unidos. 

Seu último álbum, You want it darker, é claramente uma despedida, embora seus fãs tenham resistido a vê-lo dessa forma ao longo dos 17 dias que separaram seu lançamento e a morte do compositor. O CD foi para as lojas no dia 21 de outubro de 2016, exatamente um mês depois de Cohen completar 82 anos. Em duas canções, Cohen repete o verso “estou fora do jogo”. Na faixa título, que abre o disco, aparece o coro da Congregação Shaar Hashomayim, da sinagoga que Cohen frequentava na infância, e seu vocalista, Gideon Zelemayer. Assim Cohen fechava o ciclo, o que não o impediu de cantar também uma de suas belas canções de amor: “Se o sol perdesse a luz/ e vivêssemos uma noite sem fim/ e nada mais pudéssemos sentir/ seria assim que o mundo me pareceria/ se eu não tivesse seu amor/ para torná-lo real”. 

Dos seus primeiros anos em Montreal até sua morte em Los Angeles, da solidão dos nove anos até os últimos momentos ao lado do filho, Adam Cohen, que produziu seu último álbum, Leonard Cohen foi o que ele próprio descreveu naquela que considerava sua mais simbólica canção, Bird on the wire, criada no início dos anos 1970, quando vivia na ilha grega de Hidra de forma quase edênica, entre o sol, o mar, as canções, a poesia, as mulheres, os amigos. “Como um pássaro no fio/ como um bêbado numa cantoria à meia-noite/ eu vou tentando ao meu jeito ser livre”. A poesia e a música fizeram de Leonard Cohen um homem livre. Às vezes como um pássaro, às vezes embriagado pela arte com que engrandeceu o mundo. 
  
Artigo publicado no jornal Estado de Minas, 16/12/2016

Foto: Dominique Issermann

Leia poemas e canções de Cohen na postagem anterior

ALGUNS POEMAS DE LEONARD COHEN


Rites
Bearing gifts of flowers and sweet nuts/ the family came to watch the eldest son,/ my father; and stood about his bed/ while he lay on a blood-sopped pillow,/ his heart half rotted/ and his throat dry with regret./ And it seemed so obvious, the smell so present,/ quite so necessary,/ but my uncles prophesied wildly,/ promising life like frantic oracles;/ and they only stopped in the morning,/ after he had died/ and I had begun to shout.

Ritos 
Trazendo flores e doces castanhas /a família veio assistir o filho mais velho,/ 
meu pai; e ficou ao lado da cama,/ ele deitado sobre um travesseiro ensanguentado,/ seu coração enfraquecido/ e sua garganta seca de arrependimentos./ Tudo parecia tão óbvio, o cheiro tão presente,/ quase necessário,/ mas meus tios profetizavam loucamente,/ prometendo a vida como frenéticos oráculos, / e só pararam ao amanhecer,/ depois que ele morreu/ e eu comecei a gritar. 
De Let us compare mythologies 
Famous blue raincoat 
It's four in the morning, the end of December/ I'm writing you now just to see if you're better/ New York is cold, but I like where I'm living/ There's music on Clinton Street all through the evening./ I hear that you're building/ your little house deep in the desert/ You're living for nothing now,/ I hope you're keeping some kind of record.// Yes, and Jane came by with a lock of your hair/ She said that you gave it to her /That night that you planned to go clear/ Did you ever go clear?// Ah, the last time we saw you you looked so much older// Your famous blue raincoat was torn at the shoulder// You'd been to the station to meet every train// And you came home without Lili Marlene// And you treated my woman to a flake of your life/ And when she came back she was nobody's wife.// Well I see you there with the rose in your teeth/ One more thin gypsy thief/ Well I see Jane's awake/ she sends her regards.// And what can I tell you my brother, my killer/ What can I possibly say?/ I guess that I miss you, I guess I forgive you/ I'm glad you stood in my way./ If you ever come by here, for Jane or for me/ Your enemy is sleeping, and his woman is free./ Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes/ I thought it was there for good so I never tried./ And Jane came by with a lock of your hair/ She said that you gave it to her/ That night that you planned to go clear/ Sincerely, L. Cohen 

A famosa capa de chuva azul 
São quatro da manhã, final de dezembro/ escrevo-lhe para saber se está melhor/ New York está fria, mas gosto de onde vivo/ Há música na rua Clinton por toda a noite/ ouvi falar que está construindo/ sua casinha no fundo do deserto/ Você vive para nada agora/ Espero que esteja escrevendo um diário//  Jane trouxe uma mecha de seu cabelo/ ela disse que você lhe deu de presente/ naquela noite que você planejou escapar/ Você alguma vez escapou?// Ah, a última vez em que nos vimos você parecia tão velho/ sua famosa capa de chuva azul estava puída no ombro/ você esteve na estação à espera dos trens/ e voltou para casa sem Lili Marlene// Você tratou minha mulher como um pedaço de sua vida/ e quando ela voltou não era esposa de ninguém.// Bem, vejo você com uma rosa entre os dentes/ mais um ladrão cigano/ vejo que Jane está acordada/ ela manda cumprimentos.// O que posso dizer, meu irmão, meu assassino/ acho que sinto sua falta, acho que o perdoo/ fico feliz por ter entrado em meu caminho/ se um dia passar por aqui/ por Jane ou por mim/ saiba que seu inimigo está dormindo/ e a mulher está livre/ sim, obrigado por afastar dos olhos dela o sofrimento/ pensei que estava lá por bem/ então nunca tentei.// E Jane trouxe uma mecha de seu cabelo/ ela disse que você lhe deu de presente/ naquela noite que você planejou escapar/ Sinceramente, L. Cohen. 


De Songs of love and hate

Joan of Arc
Now the flames they followed Joan of Arc/ as she came riding through the dark,/ no moon to keep her armour bright,/ no man to get her through this very smoky night./ She said, "I'm tired of the war,/ I want the kind of work I had before,/ a wedding dress or something white/ to wear upon my swollen appetite."// Well, I'm glad to hear you talk this way,/ you know I've watched you riding every day/ and something in me yearns to win/ such a cold and lonesome heroine./ "And who are you?" she sternly spoke/ to the one beneath the smoke./ "Why, I'm fire," he replied,/ "And I love your solitude, I love your pride."// "Then fire, make your body cold,/ I'm going to give you mine to hold,"/ saying this she climbed inside/ to be his one, to be his only bride./ And deep into his fiery heart/ he took the dust of Joan of Arc,/ and high above the wedding guests/ he hung the ashes of her wedding dress.// It was deep into his fiery heart/ he took the dust of Joan of Arc,/ and then she clearly understood/ if he was fire, oh then she must be wood./ I saw her wince, I saw her cry,/ I saw the glory in her eye./ Myself I long for love and light,/ but must it come so cruel, and oh so bright? 

Joana d´Arc 
As chamas perseguiram Joana d´Arc/ enquanto ela cavalgava na escuridão/ sem lua para fazer brilhar sua armadura/ sem homem para conduzi-la pela noite enfumaçada/ Ela disse, ‘estou cansada da guerra/ quero o tipo de trabalho de antes/ um vestido de casamento ou algo branco/ que cubra minha profunda fome’// Bem, estou feliz de ouvi-la falar assim/ sabe que a acompanho todos os dias/ e alguma coisa em mim anseia a conquista/ de tão fria e solitária heroína/ ‘E quem é você’, ela disse ríspida/ para o outro no meio da fumaça/ ‘Sou o fogo’, ele respondeu/ amo sua solidão, amo seu orgulho// ‘Então, fogo, esfrie seu corpo/ dou-lhe o meu para você envolver’/ dizendo assim ela se atirou/ para ser sua única noiva/ e lá no fundo de seu coração em chamas/ ele tomou as cinzas de Joana d´Arc/ e acima dos convidados da festa/ ele pendurou seu vestido de noivado feito cinzas// Então ela viu com clareza/ se ele era fogo, ela era madeira// Eu vi sua dor/ eu a vi chorar/ eu vi a glória em seus olhos/ eu mesmo desejo amor e luz/ mas será preciso ser tão cruel, e tão brilhante? 


De Songs of love and hate

You want it darker
If you are the dealer/ Iam out of the game/ If you are the healer/ I'm broken and lame/ If thine is the glory/ Then mine must be the shame/ You want it darker/ We kill the flame// Magnified and sanctified/ Be Thy Holy Name/ Vilified and crucified/ In the human frame/ A million candles burning/ For the help that never came/ You want it darker/ We kill the flame// Hineni Hineni/ I'm ready, my Lord// There's a lover in the story/ But the story is still the same/ There's a lullaby for suffering/ And a paradox to blame/ But it's written in the scriptures/ And it's not some idle claim/ You want it darker/ We kill the flame// They're lining up the prisoners/ The guards are taking aim/ I struggled with some demons/ They were middle-class and tame/ Didn't know I had permission/ To murder and to maim/ You want it darker/ We kill the flame// Hineni Hineni/ I'm ready, my Lord.

Você quer mais escuro
Se você dá as cartas/ estou fora do jogo/ se você é o curandeiro/ estou manco e quebrado/ se sua é a glória/ minha deve ser a vergonha/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Magnífico e santificado/ pelo seu Sagrado Nome/ difamado e crucificado/ pela mão humana/ um milhão de velas queimando/ pela ajuda que nunca veio/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Hineni Hineni*/ Estou pronto, senhor// Há um amante nessa história/ mas a história é sempre a mesma/ Há uma canção de ninar para o sofrimento/ e um paradoxo a culpar/ mas está nas escrituras/ não é uma afirmação vazia/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Eles enfileiram os prisioneiros/ os guardas estão apontando/ eu luto com alguns demônios/ eles eram de classe média e mansos/ não sabia que me era permitido/ matar e mutilar/ você quer mais escuro/ eu destruo a chama// Hineni Hineni*/ Estou pronto, senhor.

*Hineni – expressão hebraica que pode ser traduzida por “Eis-me aqui”, no sentido de se colocar totalmente à disposição. 


De You want it darker

Alexandra leaving 
Suddenly the night has grown colder./ The god of love preparing to depart./ Alexandra hoisted on his shoulder,/ They slip between the sentries of the heart.// Upheld by the simplicities of pleasure,/ They gain the light, they formlessly entwine;/ And radiant beyond your widest measure/ They fall among the voices and the wine.// It's not a trick, your senses all deceiving,/ A fitful dream, the morning will exhaust -/ Say goodbye to Alexandra leaving./ Then say goodbye to Alexandra lost.// Even though she sleeps upon your satin;/ Even though she wakes you with a kiss./ Do not say the moment was imagined;/ Do not stoop to strategies like this.// As someone long prepared/ for this to happen,/ Go firmly to the window. Drink it in./ Exquisite music. Alexandra laughing./ Your firm commitments tangible again.// And you who had the honor of her evening,/ And by the honor had your own restored -/ Say goodbye to Alexandra leaving;/ Alexandra leaving with her lord.// Even though she sleeps upon your satin;/ Even though she wakes you with a kiss./ Do not say the moment was imagined;/ Do not stoop to strategies like this.// As someone long prepared for the occasion;/ In full command of every plan you wrecked -/ Do not choose a coward's explanation/ that hides behind the cause and the effect.// And you who were bewildered by a meaning;/ Whose code was broken, crucifix uncrossed -/ Say goodbye to Alexandra leaving./ Then say goodbye to Alexandra lost.

Alexandra de partida
De repente a noite ficou mais fria./ O deus do amor se preparando para partir./ Alexandra foi alçada pelo ombro,/ E passaram pelas sentinelas do coração.// Seguros pela simplicidade do prazer,/ alcançam a luz e sem forma se enlaçam/ E mais radiantes do que sua maior medida,/ eles caem entre as vozes e o vinho.// Não é um truque, sua razão enganada,/ um sonho incerto que a manhã esgotará –/ Diga adeus a Alexandra, que parte./ Diga adeus a Alexandra que se perde. // Mesmo que ela durma sobre seu cetim;/ mesmo que ela te acorde com um beijo./ Não diga que isso é fruto da imaginação;/ não se entregue a pretextos como esse.// Como se houvesse se preparado para isso,/ vá com firmeza à janela. Aproveite o momento./ Música linda. Alexandra ri./ Seus compromissos palpáveis outra vez.// E você que teve a honra de seu anoitecer,/ E assim pode restaurar sua própria honra,/ Diga adeus a Alexandra que parte./ Alexandra que parte com seu senhor.// Como se tivesse se preparado para a ocasião,/ No comando de cada plano que você arruinou –/ Não escolha uma explicação covarde/ Que se esconde por trás da causa e do efeito.// E você que ficou desorientado com o significado,/ cujo código foi quebrado, crucifixo descruzado/ Diga adeus a Alexandra que parte./ Diga adeus a Alexandre que se perde. 


De Ten new songs / Book of longing 

Foto: Dominique Issermann / Pinterest

OS CAMINHOS ATÉ LEONARD COHEN

Estrasburgo: uma das mais belas cidades da França

A bordo de um trem TGV francês, vejo passarem pela janela as belas paisagens da Alsácia. Estou a caminho de Estrasburgo, cidade sede do Parlamento Europeu, quase fronteira com a Alemanha. O trem é veloz, o dia está bonito, ligeiramente nublado, mas é impossível evitar uma certa ansiedade.  É manhã de sábado, véspera de realizar um antigo desejo: estar na platéia de um concerto de Leonard Cohen, um personagem quase lendário entre minhas admirações musicais.


Na bagagem, uma camisa de malha preta, em que mandei imprimir a frase “From Brazil to see Leonard Cohen in Strasbourg”, e dois ingressos, comprados quase por impulso, em 11 de fevereiro, pela internet. Naquela noite, soube pelo site “Leonard Cohen Files”, desenvolvido na Finlândia, maior fonte de informações sobre o compositor canadense, que os shows previstos para os primeiros meses deste ano haviam sido adiados para o segundo semestre. Por causa de dores na coluna, Cohen deveria se submeter a seis meses de fisioterapia. O adiamento me soou como um convite. Eu teria tempo de planejar a viagem. Com um simples clique no mouse, garanti meu lugar e tornei próximo um sonho distante.

O ticket: sete meses de espera

Na viagem de duas horas
entre Reims e Estrasburgo, penso em Leonard Cohen, suas histórias e lendas. Nascido em Montreal em 1934, Leonard dedicou-se à poesia desde muito jovem, para desespero de sua família, de origem judaica, que o pretendia um brilhante homem de negócios. Por não obter renda suficiente com os vários livros que publicou, decidiu fazer da música um veículo para seus belos e sensíveis poemas, e assim atingir um público maior. Passo a passo, chegou em 1968 ao primeiro disco, batizado apenas de Songs, ou canções. Tinha 34 anos quando estreou no mercado musical.

Hoje, é um dos últimos grandes ídolos que, surgidos nos anos 60, deram à música jovem um status que jamais tivera. Os Beatles, Bob Dylan, Lou Reed, Pink Floyd, Bob Marley e uma lista significativa de artistas transformaram um divertimento de adolescentes em veículo de reflexão, que propôs novos comportamentos e reinventou o mundo. A diferença entre Leonard Cohen e todos os outros é que Cohen começou apenas como poeta – como se fosse pouco.

Eu havia conhecido Cohen
com enorme atraso, na década de 80, quando um amigo, o jornalista João Alberto Ferreira, me deu um extraordinário presente de aniversário, o vinil I´m your man. A música título é uma de suas obras clássicas, mas o que me pegou pelo coração naquele álbum irretocável foi uma canção construída sobre um poema de Federico Garcia Lorca, Take this waltz, ou Pequena valsa vienense, título do poema original. 

Ao fundo, o Zenith

Com esse álbum,
Cohen começava a confrontar um mundo em desintegração, segundo sua própria leitura, o que se evidenciava na canção First we take Manhattan. O choque total veio no álbum seguinte, The future, em que sentenciava, logo na primeira faixa: “Prepare-se para o futuro, ele é assassino.”  A poesia de Cohen sempre abordou os conflitos humanos e sociais e a inútil busca da salvação, seja pelo amor, pelo sexo ou pelos caminhos religiosos. Mas parecia, com esse disco, ter chegado a um impasse. Logo em seguida, Cohen saiu de cena, e desapareceu por mais de 10 anos.

Desde 1993, Leonard Cohen não se apresentava em público. Passou cinco anos recluso no mosteiro budista de Mont Baldy, nos arredores de Los Angeles. Mas reapareceu em 2001, quando lançou o CD Ten new songs, em parceria com a cantora e compositora Sharon Robinson. Para Cohen, é um álbum de celebração. Talvez a redenção que foi buscar no mosteiro, onde escreveu as letras das canções. 

Doze mil fiéis súditos de Cohen

A turnê mundial iniciada
em 2008 é uma megaprodução, com uma superbanda, formada não apenas por artistas contratados para acompanhá-lo, mas músicos que são, acima de tudo, súditos a serviço de seu mestre. Esse grupo harmonioso tem se apresentado em espaços de alto prestígio, sempre lotados.  O Zenith de Estrasburgo, por fora, parece um ginásio de esportes. Por dentro, é uma casa de espetáculos de alto nível, com uma acústica inimaginável para os padrões brasileiros. Tem precisamente 12.079 lugares. Estava totalmente tomado por pessoas que foram não apenas ouvir Cohen, mas reverenciá-lo. 

Eu e meu amigo inglês

Um público enorme,
mas nenhum sinal de tumulto, nenhuma fila, nenhum estresse. Uma hora antes, os portões estão abertos, as pessoas aos poucos vão tomando o hall que cerca as entradas da platéia. Há alguns bares e quiosques onde são vendidos CDs, livros e camisetas. Minha camisa de brasileiro exótico chama a atenção. Algumas garotas pedem para tirar fotos comigo. Já na platéia, eu e minha esposa, Nádia, explicamos a um grupo de ingleses que Leonard Cohen nunca esteve no Brasil, onde tem um público sofisticado e reverente, mas supostamente pequeno.

O concerto vai começar. Os músicos assumem seus lugares e tocam os primeiros acordes de Dance me to the end of love. Vemos apenas seus perfis, no palco em penumbra. Então, a intensidade da luz aumenta e Cohen entra correndo, com um largo sorriso. Traja um terno bem cortado e o mesmo chapéu que o acompanha nos últimos anos. Está a dois dias de completar 76 anos. Quando sua voz inconfundivelmente grave se projeta e hipnotiza o público, sinto que vivo um momento especial. Aquelas horas vividas ali na platéia do Zenith ficarão congeladas no tempo. 

Cohen, com as Webb Sisters ao fundo: emoção

As canções mais emblemáticas
de Cohen, que tive o privilégio de ouvir como se ele as cantasse para mim, fizeram de seus discos verdadeiras obras primas. Suzanne, Famous blue raincoat, Sisters of mercy, Hallelujah são algumas delas. Bird on the wire é uma espécie de projeto de vida de Leonard. “Como um pássaro no fio, como um bêbado numa cantoria noturna, vou buscando meu jeito de ser livre”, diz a letra. Cohen cita um conhecido verso dos Beatles antes de cantá-la: “Dizem que tudo que precisamos é amor, mas penso que é liberdade”, diz ele. Nessas alturas, já está difícil conter as lágrimas.

Cohen disse certa vez
ao jornalista Mikal Gilmore, da revista Rolling Stone, que encontrou na arte conforto e força – “ao fazer canções, muito da dor da minha vida se dissolvia.” É este Leonard Cohen que vemos ao longo de quase três horas de concerto, cantando de olhos fechados, muitas vezes de joelhos, prestando total reverência a cada palavra com que construiu seus poemas e às belas melodias com que os vestiu. Creio que aqui reside minha maior identificação com Leonard Cohen, a crença de que a poesia é a cura para os males da vida. 


A música a serviço da poesia

Cohen canta em estado de êxtase,
trocando reverências com os músicos, que parecem tão deslumbrados quanto o público. Ao apresentá-los – o produtor musical e baixista Roscoe Beck, o tecladista Neil Larsen, os guitarristas Javier Mas e Bob Metzger, o baterista Rafael Gayol, o saxofonista Dino Soldo e as vocalistas Hattie e Charley, as Webb Sisters – Cohen compõe um poema para cada um. Quando um deles apresenta um solo, Cohen tira o chapéu, segura-o junto ao peito e ouve atentamente.

A maior parte deles trabalha com Cohen há décadas. “Podemos jogar pela janela tudo que sabemos sobre música, porque o importante é interpretar as letras de Leonard”, afirma Metzger, no documentário Songs from the road, recém-lançado. O espírito da turnê é revelado pelo produtor Rob Hallett: “Não estamos tentando vender nada, nem quebrar recordes... apenas promover encontros entre Cohen e seus fãs.”

“Não sei quando voltaremos, mas estejam certos que eu e os músicos damos o melhor de nós”, diz Leonard. Os dois telões, ao lado do palco, mostram closes dele e dos músicos, e todas as canções são legendadas em francês. A música mais aplaudida, The partisan, fala de um personagem da resistência francesa, formada por civis que tentavam sabotar a dominação alemã durante a segunda guerra mundial. 


Leonard Cohen, canções para sempre na memória

Iniciado às 20h20,
o concerto só termina às 23h30. No bis, Cohen canta mais seis canções, até que o público se acalma e cessa de chamá-lo de volta. Uma dessas canções – If it be your will – ele apenas declama, passando a tarefa de cantar para as vocalistas Webb Sisters. Outro momento de emoção. Cohen tira novamente o chapéu e fecha os olhos. No final, entrega a elas um buquê de flores que alguém colocou no palco. Cohen é o mesmo cavalheiro cortês de sempre, agora de cabelos grisalhos e rosto vincado. O tempo passa e o concerto chega ao fim, mas as canções permanecem no ouvido, no cérebro, no coração. Dou uma última olhada para o palco, já vazio, antes de sair. Eu sei que, sempre que ouvir de novo aquelas canções, estarei de volta a Estrasburgo. 


Esta crônica foi publicada no Correio Braziliense, Caderno Pensar, em 23/10/2010