[discoteca afetiva] OUVIR SEM PARAR

Liebe Paradiso: como um livro
Classificar obras de arte com expressões como "o melhor", "o maior", "o mais importante" me parece um gesto injusto, antipático e arrogante, porque pressupõe uma tentativa de impor o julgamento de quem o faz sobre os critérios do leitor, ou receptor. No entanto, vou tomar a liberdade de dizer que nenhum CD lançado no Brasil em 2011 me proporcionou tamanho prazer quanto Liebe Paradiso, de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos. É de ouvir sem parar.

A história da música brasileira está cheia de exemplos de parcerias inesquecíveis, como Toquinho e Vinícius, João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins e Vitor Martins e inúmeras outras. Agora, se você ainda não se tocou, preste atenção nessa dupla, que já criou alguns álbuns de primeira grandeza.

Em 1997, Celso Fonseca gravou o CD Paradiso, segundo resultado de suas parcerias com o letrista Ronaldo Bastos, cujo talento já era conhecido desde o Clube da Esquina. Paradiso é um CD belíssimo, do primeiro ao último acorde. Por isso, a ideia de recriar o disco pode ter soado meio incompreensível.

Pois foi justamente o que eles fizeram. E reuniram um time - aliás, vários - de primeira grandeza para participar do trabalho. Recriaram todas as faixas e acrescentaram duas, retiradas de outros CDs da dupla. O resultado é brilhante e, por que não dizer, indescritível, porque só ouvindo o CD - do princípio ao fim, como se lê um livro - será possível compreender esses comentários.

Além da bela voz de Celso Fonseca, outras grandes estrelas interpretam essas canções. É emocionante ouvir Luiz Melodia, Adriana Calcanhotto, Milton Nascimento, Paulo Miklos, Nana Caymmi, além de outros artistas excepcionais que participam, como Marcos Valle, João Donato, Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas... e outros, muitos outros. E aqui destaco a participação de Antonio Cícero, declamando um belo poema.

Liebe Paradiso foi citado em várias listas de melhores CDs do ano. É o bastante. Não vou dizer que é melhor que outros citados. Mas vou dizer que cada faixa, ao tocar, nos parece a melhor do disco. Ao chegar ao final, fica aquela indecisão e somos obrigados a ouvir de novo. E assim indefinidamente. Obrigado pelo presente, Celso e Ronaldo!

A POESIA MERECE


A poesia de alto quilate de Ferreira Gullar, um artista que jamais deixou escapar a dignidade e a coerência em seus mais de 80 anos, acaba de ganhar mais um prêmio merecidíssimo, o Moacyr Scliar de Literatura do RS. Para esses indivíduos estranhos, assim como eu, para quem a poesia é altamente necessária e, mais que isso, vital, é prazeroso analisar esse prêmio. Para começar, o objetivo de distinguir exclusivamente poetas e contistas, a cada dois anos, com um prêmio de R$ 150 mil, terceiro maior do país, já é um mérito. As menções honrosas para A Vida Submarina, de Ana Martins Marques, Lar, de Armando Freitas Filho, Em Trânsito, de Alberto Martins, e Aleijão, de Eduardo Sterzi, também me parecem merecidas, especialmente para os dois primeiros, que eu li. 

Na lista de inscritos, há vários outros livros que, na minha opinião de leitor, poderiam ter sido premiados, como Nada a dizer, de Marcelo Sahea, Viavária, de Iacyr Anderson Freitas, Treva Alvorada, de Mariana Ianelli, O silêncio tange o sino, de Mariana Botelho, entre outros. São belíssimos trabalhos que revelam o bom momento da poesia brasileira, e sinto-me um privilegiado por ter lido alguns dos 152 livros inscritos. 

O Instituto Nacional do Livro do Rio Grande do Sul merece uma menção pela realização deste concurso, especialmente num momento em que, só para citar um mau exemplo, o governo de Minas Gerais, estado que sempre revelou boa literatura, ameaça acabar com prêmios tradicionais e até com o mais antigo periódico dedicado às letras neste país, o Suplemento Literário de MG.

A foto que ilustra esta postagem foi tomada emprestada à Agência Estado
e é de autoria de Fábio Motta.

ADEUS, WISLAWA


 A poetisa polonesa Wislawa Szymborska (pronuncia-se Vissuáva Chembórska) morreu nesta quarta-feira, 1º de fevereiro, aos 88 anos, em sua casa, na Cracóvia. Seu único livro publicado no Brasil, sob o singelo título de Poemas, lançado no ano passado, é uma belíssima amostra de sua poesia, mas apenas despertou minha sede de conhecê-la melhor. Apesar de seu nome quase imemorizável para nós, brasileiros, eu não me esqueci dessa autora premiada com o Nobel em 1996 desde que li na revista Piauí, em 2007, alguns de seus poemas. Um dos melhores exemplos de sua poesia forte, contundente, vigorosa é este que você lê abaixo. Ele não consta da coletânea publicada pela Companhia das Letras, mas quem sabe não constará de futuras traduções brasileiras?

Fotografia do 11 de setembro

Pularam dos andares em chamas -
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles -
descrever este vôo
e não acrescentar o último verso.

Wislawa Szymborska


 Tradução de Sylvio Fraga Neto e Danuta Haczynska da Nóbrega