O escritor Alexandre Bonafim, professor de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Goiás (UEG), escreve no Diário da Manhã, de Goiânia (edição de domingo, 7/12/2014), sobre meu livro de poemas Exília.
Em Exília (Ed. Dobra), o mais recente livro de poemas de Alexandre Marino, podemos contemplar uma linguagem de tensões, escritura a se esmerilar em si mesma, afiando-se num jogo de associações livres, oníricas, responsável por uma linguagem que, a despeito de voltar-se permanentemente para situações da realidade, tem em si mesma, pelo efeito da função poética, um burilado pergaminho de metáforas. Desde os românticos alemães, passando por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, a poesia tornou-se um emaranhado de associações lexicais raras, em que o processo de metaforização atinge uma agudeza intensa. Dessa forma, Marino não se atenta apenas aos referentes do real, mas sobretudo à própria expressão linguística, o que o torna um poeta sobretudo da consciência verbal. É o que podemos notar nessa pequena obra prima, O cavalo em chamas:
Um cavalo selvagem
branco como o assombro,
carrega uma labareda
a atiçar-lhe o lombo.
Mergulha no nevoeiro
onde uma ponte houvera,
pênsil sobre o penhasco
arrimo de corredeiras.
Este cavalo em chamas
galopa entre as brumas
à margem do precipício
por uma trilha sem rumo.
Atravessador de abismos,
o cavalo meio pássaro
enfrenta dor e cansaço
e a inépcia para o voo.
O fogo, essa estrela
cadente de encontro ao rio,
ilumina o cavalo peixe
sobre as águas bravias.
Para enfrentar o mistério,
incêndio no precipício,
resta a luz do homem
entregue à montaria.
Em seu fim e seu início
a vida costura rotas
nos passos iluminados
em caminhos sem respostas.
Essa assustadora chama
atiça a cavalgada
sobre o rio ignoto
que encanta e ameaça.
O cavalo porta as almas
de peixe, pássaro e fera.
E essa eterna chama,
alimento de quimeras
(p.11-12)
O cavalo a conduzir o cavaleiro é a própria linguagem a impulsionar o poeta, ou em um sentido existencial, o destino a talhar a condição humana. Nesse percurso de abismos, de fascínios, resta sempre a ambiguidade desse cavalo que, paradoxalmente, encarna o pássaro e o peixe, animais de outro habitat. Eis as tensões, enfim, que vão conflagrando a complexidade da própria linguagem, gerando paradoxos e associações encantatórias capazes de agudizar o mistério desse cavalo cujo fundamento, como a existência em si, é pura magia, denso enigma.
Em outro poema de bela fatura, Majestade, temos uma árvore que, assim como em O cavalo em chamas, encarna o real, mas o ultrapassa, instaurando no solo concreto o próprio arroubo do desconhecido:
Esta árvore
te acolhe e consola,
mas também tem fome.
Ao te assustares
com teus arredores,
feitos de não lugares,
sabes onde encontrá-la
para verter-lhe nos braços
teu pranto farto.
Ela também carrega
na carne
sinais do massacre
que te retalhou a pele
e as entranhas.
Mas ao contrário
dos que vacilam
em busca de um sinal
e apodrecem no solo,
a árvore
visita o paraíso
como hóspede de honra
e enfrenta o inferno,
onde deita suas garras.
Esta árvore
renuncia à seiva
para consolar-te
das tormentas e das secas,
e retrata tuas veias,
onde trafega o desamparo.
A única sombra
a protege-la
de teu olhar cruel
é a noite,
escultora de teus pesadelos.
Os pássaros
aninhados em seus galhos
te ensinam:
embora possas
adormecer
recostado em seu corpo,
o teu voo é falso,
teu abraço é falho.
A árvore, cravada em um cerne que não mais é o umbigo do mundo, âmago dessacralizado, possui, ao redor, não-lugares, vazios, desertos inóspitos onde o homem e a árvore têm de estabelecer morada, desvelando-nos uma situação existencial de extrema indigência e fragilidade. Dessa forma, a árvore, tal como o homem, vive em desterro, em exílio, circunstância vivencial que é, na verdade, o húmus de todo o livro e nos traz, em clave pós-moderna, a velha questão do poeta inadaptado, do albatroz baudelairiano sopesado pela força de uma sociedade cujo valor não mais é a beleza, a poesia, mas o dinheiro, a ambição e a usura. No entanto, teimosa, com raízes no inferno e a fronde no paraíso, a árvore resiste aos massacres, tal como o poeta que, também resistente, é um combatente audaz a fazer da linguagem o último refúgio no qual ainda resguarda sua humanidade.
Se no nível psicológico o exílio se desvela pela inadaptação, no plano físico do corpo vislumbramos um processo também angustiante, pois a carne perde a liberdade e enclausura-se em limites claustrofóbicos:
[...]
Este corpo
mal se acomoda
em suas esperas,
mas cercado de fronteiras
revolve o infinito,
porque só o ínfimo
interessa.
Este corpo emudece
no momento do grito
dentro da noite imensa,
[...]
Este corpo desconhece
o espaço que o acolhe
e rejeita,
e sabe a trilha secreta
dos deuses,
feita de abismos
e delicadezas.
[...]
Este corpo
cria um novo sonho
a cada pedaço
amputado,
recria o ninho
a cada exílio,
mas não compreende
mapas e rotas.
[...
Este corpo
se alimenta a esmo
e colhe da vida,
gota a gota,
o mais saboroso
veneno.
(p. 46-48)
O corpo, por fim, esfacela-se, fragmenta-se num amplo processo de desrealização da concretude física humana. Exílio a se findar em múltiplos exílios, cujo fim é a lenta dissolução da vida. Em um mundo inóspito, reificado, onde os processos de desumanização atingem uma agudeza antes nunca vista, o poeta ecoa seu canto dolorido, mas ao mesmo tempo vivo, num grito de prometeu rebelde, acorrentado, mas audaz na perspicácia de sua luta.
Em Exília, portanto, encontramos uma fecunda crítica à situação do homem contemporâneo, feita por uma linguagem cortante, mas altamente lírica, simbólica, escritura que denuncia, mas que também se desvela em desejo, em pulsão de vida, telúrica, força pujante do verbo humano. Alexandre Marino, em Exília, rende-nos, portanto, momentos de alta literatura.