[crônica] A MAIS LONGA VIAGEM

Algumas notícias, lidas aleatoriamente em jornais recentes, dizem muito sobre os mistérios da humanidade. Um homem armado entra num edifício da Marinha em Washington e mata 12 pessoas. Um ataque com armas químicas contra uma população civil na Síria deixa mais de mil mortos. E, pela primeira vez na história, um objeto construído por seres humanos atravessou os limites do sistema solar.

O objeto em questão é a sonda Voyager 1, que acaba de chegar ao abismo do espaço interestelar, bela e poética expressão usada pelos cientistas para descrever os limites entre a área do cosmo sob influência de nossa estrela, o Sol, e o espaço infinito por onde essa pequena heroína navegará até os domínios de uma próxima estrela.

Será uma longa viagem. A previsão é que ela só alcance um planeta de outro sistema dentro de 40 mil anos. Lançada pela Nasa a 5 de setembro de 1977,  percorreu até agora 19 mil milhões de quilômetros, e por volta de 2025 perderá a capacidade de enviar informação à Terra. Os dados que ela tem enviado levam 17 horas para chegar a nosso planeta. As últimas fotos que mandou, em 1980, retratavam cenas inimagináveis de Júpiter e Saturno, incluindo as duas luas de Júpiter. Depois os cientistas desligaram sua câmera, para poupar energia, pois ela demonstrava capacidade de ir muito mais longe do que no início se esperava.

O maior especialista na missão Voyager, Edward C. Stone, tem 77 anos e está no projeto desde 1972. Ele não saberá o que acontecerá quando a sonda chegar a outro planeta. Nem eu. E nem vocês, caro leitor, cara leitora. Mas ele acredita num futuro melhor para a humanidade. Eu gostaria muito de lhe perguntar o que ele pensa dos cientistas que criam para a indústria bélica projetos de armas cada vez mais mortais. Ou daqueles que descobriram o mecanismo do gás sarin sobre as células humanas, fazendo dele uma arma terrivelmente mortífera.

Quando pensei na contradição entre os feitos heroicos e nobres dos humanos e seus gestos mais mesquinhos, folheei alguns jornais em busca de feitos dignos de admiração. Mas nossas páginas estão coalhadas de tragédias, de tal forma que não há espaço para mostrar exemplos dessa nossa face quase oculta. 

Tendo a acreditar que o mal nos seduz. Tanto que notícias de acidentes, tragédias, crimes, ainda que muito distantes de nossa realidade imediata, nos atraem mais do que a viagem da Voyager. E não é por ela própria estar distante, pois isto é o que ela tem de mais sublime.

Tento imaginar o que pensarão sobre nós os seres inteligentes que habitarem o distante planeta onde a Voyager pousará dentro de 40 mil anos. Talvez, em futuro tão inimaginável, a Terra nem exista mais, ou tenha sido abandonada, em ruínas, por seres que no futuro precisarão de outro planeta para destruir. Mas quem receber a Voyager terá informações, ainda que falsas e incompletas, sobre o que somos hoje. Ela carrega, por exemplo, em discos analógicos, uma gravação da Quinta Sinfonia de Bethoven, um dos pontos altos da criatividade humana. Terão exemplos de sons da Terra, como trovões, vulcões, vento, chuva, e ouvirão vozes de animais como hienas e elefantes. Também serão saudados em 55 idiomas diferentes.

Só não saberão que os homens, pelo menos os de hoje, são incapazes de viver em paz. Nossa vocação belicosa foi mantida em segredo.  


[Ilustração: sonda Voyager 1 - Nasa]

[crônica] AS ASAS DA PASSARINHA

Bárbara era uma adolescente em 1959. Seus pais, Ruth e Elliot, achavam estranho que a garota gostasse de brincar com bonecas. Donos de uma fábrica de brinquedos, tiveram a luminosa ideia de criar uma boneca adolescente, que combinasse melhor com a filha. Assim nasceu Barbie, obra do designer Jack Ryan e principal produto da Mattel, a fábrica localizada em Nova York.

A bonequinha alastrou-se pelo mundo e pelos armários de crianças e pré-adolescentes, e virou sonho de consumo de meninas que sonham com o universo adulto. Com seios volumosos, cabelos lisos escorridos e corpo longilíneo, bem ao estilo norte-americano, ganhou, ao longo dos anos, um enorme guarda-roupa e até um namorado, sujeitinho bombado e mal-encarado, que as menininhas guardam nas gavetas ao lado da Barbie.

Nascida em 1959, Barbie tornou-se, mais que um brinquedo, um símbolo da mulher produzida e submissa aos modelos de beleza estabelecidos pela mídia. Já tem lá seu meio século de idade, e parece cada vez mais viva na mente de outras adolescentes – incluindo aí moças que já passaram dos vinte ou trinta. A mente feminina é um mistério.

A Barbie é uma espécie de modelo de mulher que vai na contramão da natureza, enchendo-se de plásticos e se esquecendo de que o ser humano é, na verdade, feito de carne, ossos, suores, pelos e cheiros, com todas as suas semelhanças, diferenças, virtudes e defeitos, sinais, anormalidades, biótipos.

É muita pretensão: a indústria da beleza, que enche seus cofres ao vender produtos para a mulher, agora se propõe a fabricar a própria mulher. Na linha de montagem, as barbies estão vivas. Enquanto os corpos vão passando pela esteira, cirurgiões plásticos, depiladores, dermatologistas, cabeleireiros, como operários numa fábrica de automóveis, vão transformando a imperfeita e sedutora mulher de carne e osso numa insossa boneca de plástico.

Cosméticos eliminam os cheiros e ceras eliminam os pelos. Os cabelos, lisos, ondulados ou crespos, adquirem o mesmo aspecto padronizado e artificial. Os corpos são esculpidos pelos cirurgiões, que não são artistas, como o anônimo escultor que fez a Vênus de Milo, uma sedutora mulher de pedra que perdeu os braços. São apenas comerciantes de silicone.

Até meninas adolescentes já entraram nessa onda. O número de adolescentes entre 14 e 18 anos que se submetem a cirurgias plásticas mais do que dobrou nos últimos quatro anos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Foram 91.100 cirurgias em 2011. O Brasil é o segundo país do mundo nesse tipo de intervenção, atrás apenas da pátria da Barbie. A lipoaspiração e o implante de silicone nas mamas são as mais comuns, tanto para adultas quanto para adolescentes.

O dado mais impressionante, no entanto, é que, de acordo com dados da mesma entidade, mais de 9 mil brasileiras se submeteram em 2011, de acordo com os números mais recentes, a cirurgias plásticas de correção da vagina – a chamada labioplastia. O Brasil é campeão no procedimento, com 16% do total praticado no mundo. Estão cortando as asas da passarinha!

E pensar que em meados do século passado as mulheres lutaram tanto para deixar de ser um objeto sexual... Se naquele tempo ser objeto tinha um sentido figurado, agora, em pleno século 21, o sentido se torna cada vez mais literal! 


[Ilustração: batkatcreations.com]