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[crônica] "H" de Humanidade
[crônica] ISADORA EM ABBEY ROAD
[poema] RUÍNAS DAS RUÍNAS
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[poema] O PIANO
Este poema faz parte de meu livro Exília, publicado em 2013 pela Dobra Editorial. O livro foi criado com o apoio da Bolsa Funarte de Criação Literária, numa época em que o governo brasileiro apoiava e patrocinava a criação artística.
A imagem é do fotógrafo francês Romain Thiery, aficcionado em pianos abandonados e edifícios em ruínas. Autor do livro de fotografias Requiem pour pianos, disponível em seu site romainthiery.fr. Seu perfil no Instagram é uma das mais interessantes coleções de fotos daquela rede social. Thiery já publicou nos jornais The Guardian, Der Spiegel, El Pais, Daily Mail, entre outros.
[crônica] OS 50 ANOS DE UMA AVENTURA JUVENIL [2]
[crônica] A REVOLTA DA VACINA
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[poema] CLAUSTROFOBIA
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[crônica] DOMINGO ENTRELAÇADO
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Uma reflexão sobre o romance Domingo, de Ana Lis Soares, em minha coluna na Folha da Manhã, de Passos (MG), de 10 de setembro.
[crônica] O CAÇADOR DE PALAVRAS
[crônica] O PODER DOS LIVROS
[poema] SETE PLANETAS
COLUNA NA FOLHA DA MANHÃ [11]
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Crônica publicada na Folha da Manhã, de Passos (MG), em 12 de fevereiro de 2021.
COLUNA NA FOLHA DA MANHÃ [6]
NOS TEMPOS DO CHAPADÃO DO BUGRE
APRENDENDO COM SÉRGIO SANT´ANNA
UMA NOVA LEITURA DE EXÍLIA
Em Exília (Ed. Dobra), o mais recente livro de poemas de Alexandre Marino, podemos contemplar uma linguagem de tensões, escritura a se esmerilar em si mesma, afiando-se num jogo de associações livres, oníricas, responsável por uma linguagem que, a despeito de voltar-se permanentemente para situações da realidade, tem em si mesma, pelo efeito da função poética, um burilado pergaminho de metáforas. Desde os românticos alemães, passando por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, a poesia tornou-se um emaranhado de associações lexicais raras, em que o processo de metaforização atinge uma agudeza intensa. Dessa forma, Marino não se atenta apenas aos referentes do real, mas sobretudo à própria expressão linguística, o que o torna um poeta sobretudo da consciência verbal. É o que podemos notar nessa pequena obra prima, O cavalo em chamas:
Um cavalo selvagem
branco como o assombro,
carrega uma labareda
a atiçar-lhe o lombo.
Mergulha no nevoeiro
onde uma ponte houvera,
pênsil sobre o penhasco
arrimo de corredeiras.
Este cavalo em chamas
galopa entre as brumas
à margem do precipício
por uma trilha sem rumo.
Atravessador de abismos,
o cavalo meio pássaro
enfrenta dor e cansaço
e a inépcia para o voo.
O fogo, essa estrela
cadente de encontro ao rio,
ilumina o cavalo peixe
sobre as águas bravias.
Para enfrentar o mistério,
incêndio no precipício,
resta a luz do homem
entregue à montaria.
Em seu fim e seu início
a vida costura rotas
nos passos iluminados
em caminhos sem respostas.
Essa assustadora chama
atiça a cavalgada
sobre o rio ignoto
que encanta e ameaça.
O cavalo porta as almas
de peixe, pássaro e fera.
E essa eterna chama,
alimento de quimeras
(p.11-12)
O cavalo a conduzir o cavaleiro é a própria linguagem a impulsionar o poeta, ou em um sentido existencial, o destino a talhar a condição humana. Nesse percurso de abismos, de fascínios, resta sempre a ambiguidade desse cavalo que, paradoxalmente, encarna o pássaro e o peixe, animais de outro habitat. Eis as tensões, enfim, que vão conflagrando a complexidade da própria linguagem, gerando paradoxos e associações encantatórias capazes de agudizar o mistério desse cavalo cujo fundamento, como a existência em si, é pura magia, denso enigma.
Em outro poema de bela fatura, Majestade, temos uma árvore que, assim como em O cavalo em chamas, encarna o real, mas o ultrapassa, instaurando no solo concreto o próprio arroubo do desconhecido:
Esta árvore
te acolhe e consola,
mas também tem fome.
Ao te assustares
com teus arredores,
feitos de não lugares,
sabes onde encontrá-la
para verter-lhe nos braços
teu pranto farto.
Ela também carrega
na carne
sinais do massacre
que te retalhou a pele
e as entranhas.
Mas ao contrário
dos que vacilam
em busca de um sinal
e apodrecem no solo,
a árvore
visita o paraíso
como hóspede de honra
e enfrenta o inferno,
onde deita suas garras.
Esta árvore
renuncia à seiva
para consolar-te
das tormentas e das secas,
e retrata tuas veias,
onde trafega o desamparo.
A única sombra
a protege-la
de teu olhar cruel
é a noite,
escultora de teus pesadelos.
Os pássaros
aninhados em seus galhos
te ensinam:
embora possas
adormecer
recostado em seu corpo,
o teu voo é falso,
teu abraço é falho.
A árvore, cravada em um cerne que não mais é o umbigo do mundo, âmago dessacralizado, possui, ao redor, não-lugares, vazios, desertos inóspitos onde o homem e a árvore têm de estabelecer morada, desvelando-nos uma situação existencial de extrema indigência e fragilidade. Dessa forma, a árvore, tal como o homem, vive em desterro, em exílio, circunstância vivencial que é, na verdade, o húmus de todo o livro e nos traz, em clave pós-moderna, a velha questão do poeta inadaptado, do albatroz baudelairiano sopesado pela força de uma sociedade cujo valor não mais é a beleza, a poesia, mas o dinheiro, a ambição e a usura. No entanto, teimosa, com raízes no inferno e a fronde no paraíso, a árvore resiste aos massacres, tal como o poeta que, também resistente, é um combatente audaz a fazer da linguagem o último refúgio no qual ainda resguarda sua humanidade.
Se no nível psicológico o exílio se desvela pela inadaptação, no plano físico do corpo vislumbramos um processo também angustiante, pois a carne perde a liberdade e enclausura-se em limites claustrofóbicos:
[...]
Este corpo
mal se acomoda
em suas esperas,
mas cercado de fronteiras
revolve o infinito,
porque só o ínfimo
interessa.
Este corpo emudece
no momento do grito
dentro da noite imensa,
[...]
Este corpo desconhece
o espaço que o acolhe
e rejeita,
e sabe a trilha secreta
dos deuses,
feita de abismos
e delicadezas.
[...]
Este corpo
cria um novo sonho
a cada pedaço
amputado,
recria o ninho
a cada exílio,
mas não compreende
mapas e rotas.
[...
Este corpo
se alimenta a esmo
e colhe da vida,
gota a gota,
o mais saboroso
veneno.
(p. 46-48)
O corpo, por fim, esfacela-se, fragmenta-se num amplo processo de desrealização da concretude física humana. Exílio a se findar em múltiplos exílios, cujo fim é a lenta dissolução da vida. Em um mundo inóspito, reificado, onde os processos de desumanização atingem uma agudeza antes nunca vista, o poeta ecoa seu canto dolorido, mas ao mesmo tempo vivo, num grito de prometeu rebelde, acorrentado, mas audaz na perspicácia de sua luta.
Em Exília, portanto, encontramos uma fecunda crítica à situação do homem contemporâneo, feita por uma linguagem cortante, mas altamente lírica, simbólica, escritura que denuncia, mas que também se desvela em desejo, em pulsão de vida, telúrica, força pujante do verbo humano. Alexandre Marino, em Exília, rende-nos, portanto, momentos de alta literatura.
A POESIA SEM FRONTEIRAS DE ANA RAMIRO
A poesia de Ana Maria Ramiro é exemplar dessa linguagem sem limites, que oferece a possibilidade da transcendência na leitura. Em Fronteiras da Pele, ela traz para a condição de arte o corpo e seus elementos. E se a perspectiva do prazer, sua razão de ser, provoca a inquietação do corpo, a poesia é fruto da inquietação da alma. Não é por outra razão que o primeiro verso do poema Belzing Bug já revela a mão tateando a possibilidade do rosto, vertida em tarântula, que nesse gesto executa o preciso movimento que tem como fim a saciedade – logo, o prazer.
Sem a pretensão de desvendá-la, o melhor a fazer é mergulhar na poesia de Ana Maria Ramiro e entregar-se ao ritmo de seus versos, deixar que a minuciosa elaboração conduza a leitura. Entre as boas surpresas proporcionadas por esse exercício está o encontro de algumas palavras que se destacam das demais – como se tivessem som mais agudo ou cor mais vibrante – e que se apresentam como guias de viagem. Tais palavras, que o leitor deve assumir o risco de identificar (ou não), darão o tom das diversas sensações proporcionadas por essa entrega. E aqui é bom lembrar que, em poesia, o importante é abrir-se à sensação, mais que buscar o entendimento racional.
Ana Maria trabalha com palavras e imagens delicadamente escolhidas, com esmero e precisão, para elaborar a ideia que o poema contém. Algumas parecem ter sido inventadas especificamente para amalgamar os seus poemas. “Quadro a quadro / o tempo retrocede // descaminham / os pés / sob um solo móvel” (Abissínia).
A autora lança mão do poder das metáforas para intensificar a interação entre palavra e corpo, como no belo Linhas de fuga (“um mergulho // sistemático no fundo do aquário / em busca da escama, no hiato / da pedra, o salto / atávico”) ou em Origami urbano (“A cada vinco, mudanças / na química do asfalto // embotar o gris, romper / a lápide que se estende / sob o casco humano // céu de agapanto”).
Nesse exercício de enfrentar as fronteiras da pele, Ana Ramiro brinca de esfinge e assim se apresenta ao leitor perplexo. Mas ler poesia não é desvendar enigmas; é romper, ao lado do poeta, os limites que a ambos se apresentam, para assim se respirar a liberdade oferecida pelo voo das palavras (“bailarina no globo / da morte, o pensamento fixo / num ponto sem foco”), pelo mergulho na metáfora (“acima da sombra, um pássaro / renega casa, identidade / e se desfolha // nômade”), pelo gozo diante do encontro a realizar (“no deserto da pele (sinuosa) // uma jóia desliza / nua”).
A poesia de Ana Maria Ramiro abre possibilidades de leituras e releituras que absorvem o parceiro-leitor em redemoinho, oferecendo-lhe não respostas, mas perplexidades. Fronteiras da pele prossegue o caminho aberto em seu livro anterior, Desejos de Gaia, um tratado sobre os sagrados calores que alimentam o corpo e lhe proporcionam energia vital. Mas, se no volume de 2007 Ana Ramiro carregava em fina ironia, em Fronteiras da pele ela intensifica a “elaboração do gesto” (“reconhecer-se na fome / do tigre, // sentir seus músculos, / seu hálito, // ler o segredo / estampado // no rajado da pele”). Esse salto além faz de sua poesia uma bela aventura.
Escrevi este texto em 2009, e Ana Ramiro o publicou no blog Fronteiras da Pele, que criou para divulgar o livro que acabara de lançar. Também o site literário Conexão Maringá, que infelizmente não existe mais, o publicou. Sempre gostei muito da poesia da Ana e a poesia nos fez amigos. Ana estava morando há alguns anos em Portugal, onde o marido Dario Sensi, diplomata, ocupa cargo na Embaixada do Brasil. Ana Ramiro faleceu em Brasília, no dia 19 de julho. Uma grande perda para a poesia e os amigos. Uma homenagem é muito pouco, mas é o possível.