Um retrato
Alexandre Marino
Teu olhar me abraça, mulher,
e me sobrevoa
como o silêncio das corujas
como os que temendo os abismos
à borda de si mesmos se debruçam
Tua viagem imóvel
faz de mim um pirata arrependido
que naufraga em si próprio
para não morrer no mar como um corpo estranho
E diante de teu rosto permaneço estático
deixando que teus olhos se escorreguem
sobre minha superfície pálida
(Eu bebo soluços, mulher,
e vomito sonhos
por não ter como os engolir)
É o que sente um homem
ao levantar o rosto e rever-te nua
refletida nas estrelas entre roupas no varal
e ao tentar voar descobrir que a lua
se desprendeu da poça d´água
e despenca no quintal
E eu revolucionário aleijado
que jogo sal no café
entre poemas e biscoitos
sem poder tomar em armas
ou destruí-las todas
miro mais uma vez o teu retrato
e sorrio quando teu cheiro
invade o quarto
Mas antes que me asfixies com um sorriso
eu bebo a multidão para ficarmos sós
e sem procurar caminhos
ou dividir fronteiras
fecho os olhos como um pescador de almas
que perdeu a linha
e se feriu com os anzóis.
Publicado no livro O delírio dos búzios (Varanda, 1999), Um retrato venceu o XI Festival de Poesia Falada de Varginha em 1986. Voltaremos ao Festival este ano.
2 comentários:
Muito bonito!
Deliram búzios e as roupas no varal parecem asas de linho fino sob a lua
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