O poema que se segue foi publicado, com grande destaque, na contracapa do caderno Pensar, do Correio Braziliense deste sábado, 24/09. Agradeço aos editores e perdôo um pequeno erro: a ausência de um verso, na quinta estrofe.
Arqueologias
As infinitas casas dentro de uma casa.
Incontáveis cômodos, entre corredores
e labirintos.
Passagens secretas,
quartos abandonados,
paredes falsas
por onde fantasmas navegam seus instintos.
No banheiro, sinais de uma presença
sem testemunhas.
Um nome proibido e seu vazio.
O perfume de sabonete Labas
e a gastura de fincar-lhe as unhas.
As gavetas onde o pai esconde as amantes,
uma flor seca entre as páginas do caderno,
as janelas invisíveis
onde mãe e filhas se debruçam para sonhar,
uma bola que nunca mais voltou à terra
e um muro que limita três mistérios.
E há outra casa e dentro ainda outra,
onde plange um violão doente de cupins,
um violão que se atira ao quintal
em noites de vendaval,
abre cordas e peito à ventania
e desperta um morto no jardim
para a última cantoria.
Mas há outras casas, e outras
enterradas sob a alvenaria,
onde se ouve o amor dos gatos no porão
e seus ecos no coração de uma tia
em eterna vigília no fogão,
enquanto chegam as notícias
à mesa da cozinha.
E no guarda-roupas do último quarto,
um espelho esclerosado
reflete sorrisos senis de crianças mortas,
na escuridão do dia ensolarado.
Ainda entre as paredes de outra casa escondida,
uma cortina veste o rosto da senhora arrependida,
e no oratório, santos expiam culpas
ouvindo confissões das filhas de Maria.
Mas há outras sombras soterradas
sob os alicerces de tantas epigamias,
entre ladrilhos rotos e canteiros d´alface,
jabuticabas maduras e rosas ressecadas,
o cão de guarda farto de fobias.
Sob a terra, vermes se embriagarão
com os restos da adega feita em lágrimas
e os suores de mortais enquanto vivos.
Não haverá poças após as chuvas,
frutas a colher, pássaros nos fios.
Não vou chorar pelo tombo na escada.
Não haverá escadas.
Haverá o espanto dos arqueólogos
ao desenterrar
entre choros
o meu sorriso.
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