[cinema] AQUARIUS, OU AS RUÍNAS DO EDIFÍCIO


Fui ver Aquarius, movido pelas polêmicas em torno do filme. Estrelado por Sônia Braga, teve sua primeira exibição em maio deste ano, no Festival de Cannes, na França, quando concorreu à Palma de Ouro – mas não ganhou qualquer prêmio. Vem tendo boa carreira internacional e principalmente no Brasil, onde estreou em 1º de setembro. Mas não foi escolhido para concorrer ao Oscar, o que acrescenta mais uma polêmica às que já havia provocado. 

Dirigido por Kleber Mendonça Filho, o filme ficou famoso antes de ser exibido por aqui, graças ao protesto promovido no tapete vermelho do Festival de Cannes, quando a equipe do filme exibiu cartazes denunciando um “golpe de estado” contra a então presidente Dilma Rousseff. A enorme repercussão da manifestação transformou o diretor e seu filme em queridinhos dos petistas e seus apoiadores, que batem palmas nos finais de sessão e gritam “fora Temer”. Ouvi alguns desses gritos no Cine Brasília, onde o assisti (mas não ouvi nenhum “volta Dilma”). 

A primeira pergunta que me ocorre é: será que o filme faria o sucesso que está fazendo se não tivesse havido protesto em Cannes? 

Cinema é indústria, mas também é arte. Se não for assim, não faz sentido refletir a respeito. E arte e política não costumam resultar em boa mistura. Por força dessa mistura, Aquarius vem sendo apresentado por alguns de seus fãs com adjetivos superlativos que não merece. É um filme mediano, que tem um grande mérito – segurar a tensão até o fim, ao deixar a plateia na expectativa do desfecho da queda de braço entre Clara (Sônia Braga) e a construtora Bonfim, que quer expulsá-la do apartamento onde mora, na praia da Boa viagem, em Recife. 

Um parêntesis: até aqui, a história do filme é conhecida. A quem não viu o filme e não quer quebrar a surpresa do que se segue, recomendo que não prossiga a leitura, pois não há como comentá-lo sem falar do final.

Para acompanhar a história, o público encara 2 horas e 25 minutos de filme, que caberia em menos de duas horas. Se escrever é cortar palavras, como disse o poeta Drummond, filmar é cortar cenas. Mas o roteiro padece de excessos. Logo no início, uma festa comemora o aniversário de Tia Lúcia. O ano é 1980 e ela completa 70 anos. Enquanto crianças discursam, ela recorda cenas de sexo (explícito) que praticou ali pelos vinte anos – portanto, nos anos 1930. A cena da festa é extremamente longa e nada tem a ver com o restante do filme, a não ser pelo fato de que foi em cima da mesma cômoda agora pertencente a Clara que ela se ofereceu para o amante lhe fazer sexo oral. 

Clara vive de recordações. É jornalista aposentada, e todos os vizinhos já venderam seus apartamentos para a construtora Bonfim. Só ela resiste. Na sua intimidade, ela ouve uma enorme coleção de vinis (que fornecem a ótima trilha sonora do filme), eventualmente cuida do neto, dorme numa bela rede, sai com as amigas para conversar futilidades ou desce para ir à praia, enquanto Ladjane, uma serviçal que trabalha para ela há 19 anos (e a adora) prepara na cozinha seus pratos favoritos. 

Kleber Mendonça Filho tem uma ótima história nas mãos. O filme é um elogio da memória, da identidade e da resistência. Clara é uma personagem forte, pela disposição de lutar contra a construtora e pela batalha que travou no passado contra o câncer. Por outro lado, é uma burguesa cujo único projeto de vida é permanecer no apartamento onde mora – um dos cinco que possui, como confessa, no final do filme, ao engenheiro Diego Bonfim. 

Aquarius discute questões da maior atualidade e importância no Brasil. A história e a memória versus o capitalismo sedento é uma delas. Dentro do apartamento, temos um exemplo da desigualdade social, com Clara curtindo suas recordações e Ladjane trabalhando para ela. Clara, aposentada e bem de vida, mora de frente para o mar. Ladjane, mais velha que Clara, vive em Brasília Teimosa, meio caminho entre bairro e favela. Outras questões colocadas na mesa são a homossexualidade, a ostentação do poder, a questão feminina. 

O público supostamente de esquerda que ama o filme e engorda sua bilheteria toma as dores de Clara e se emociona com sua luta. O irônico é que os vilões do filme são os donos da Construtora Bonfim, empresa inescrupulosa provavelmente inspirada nas grandes empreiteiras nacionais – OAS, Odebrecht, etc – que se tornaram cúmplices dos governos do PT no gigantesco assalto aos cofres públicos promovido nos últimos anos. O público que continua apoiando o PT sabe do que os empresários da construção civil são capazes, mas talvez não recorde quem são os seus aliados. 

O que segura o filme é a surpresa que parece se preparar para o final. As ações contra Clara incluem ofertas em dinheiro, pressão sobre os filhos, festas e orgias no apartamento ao lado, invasão por crentes de alguma igreja. Mas ninguém faz ideia do que vai acontecer. 

E o que acontece? Clara descobre uma arma mortífera contra a construtora. São documentos que obtém num arquivo público. Quando os apresenta aos donos da empresa, eles, pela primeira vez, saem do sério. Mas que documentos são esses? O que eles provam? Não se sabe. À plateia, que tanto torceu por Clara, é sonegada essa informação essencial: qual é a arma usada por ela contra seus inimigos. 

As luzes se acendem e ouvem-se aplausos. Depois, alguns gritos de “fora Temer”. As pessoas saem do cinema acreditando na vitória de Clara. Mas acontece que os cupins introduzidos pela construtora no prédio vão destruí-lo inapelavelmente. É uma metáfora do que acontece há anos no Brasil, onde as grandes empreiteiras, ao financiar as campanhas petistas, também introduziram na administração pública cupins insaciáveis. E depois cobraram seu preço. 

[poema] TRÊS INFÂNCIAS

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A edição de setembro do Suplemento Literário de Minas Gerais, que completa 50 anos de circulação, publica meu poema Três Infâncias, entre as preciosidades de sempre. Agradeço a Jaime Prado Gouvêa, João Barile,Fabrício Marques  e toda a equipe do SLMG pela generosidade do espaço.

[poema] ESTATÍSTICAS

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Naquele sete de setembro de 1996 teve início uma história feita de muito amor e muita poesia. Os poemas que publiquei aqui desde o dia 1º falam um pouco dessa história. Fazem parte do livro "Poemas por amor", que lancei em 2007 mas não comercializei - apenas distribuí alguns exemplares a amigos próximos. São uma forma de estender esta comemoração a quem gosta de poesia e talvez possa compreender essas palavras.

MEUS LIVROS NA BANCA DA CONCEIÇÃO

Exília e Arqueolhar, à venda na Banca da 308 Sul
Meus livros mais recentes, Exília (Dobra Editorial, SP, 2013) e Arqueolhar (LGE/Varanda, DF, 2005), estão à venda na Banca da Conceição, na 308 Sul, em Brasília. É um ponto de venda importante, por duas razões: primeiro, porque a 308 Sul é quadra símbolo de Brasília, aquela onde se conservou radicalmente a proposta de Lúcio Costa para esta cidade quase utópica onde vivo. Com projeto paisagístico de Burle Marx, a quadra é atração turística de Brasília. Segundo, porque a jornalista Conceição Freitas é desde outubro de 2015 a proprietária da banca de revistas da 308 Sul. 

Conceição Freitas tornou-se, ela própria, uma referência em Brasília, construída ao longo de muitos anos em que escreveu sobre a cidade, defendendo seu projeto, nas páginas do Correio Braziliense. Meus livros fazem parte de uma criteriosa seleção de obras que Conceição escolheu para serem vendidas no limitado espaço da banca. Estou muito bem acompanhado por outros escritores que aqui constroem não apenas a sua obra, mas o acervo literário de uma cidade ainda jovem, mas que gera e acolhe grandes talentos. 

Só posso agradecer à Conceição. O espaço da Banca da 308 Sul, além de restrito, é valioso. 

É PRECISO SILÊNCIO PARA OUVIR MÚSICA


Quando Brasília foi inventada, a civilização parecia prestes a aportar por aqui. Quase 60 anos depois, o que foi feito da cidade democrática, humanista, que garantiria qualidade de vida a seus moradores? Temos trânsito engarrafado, criminalidade e insegurança, falta de mobilidade, estresse, barulho, conflitos urbanos, poluição. Grande parte da área urbana carece de calçadas, muitas de nossas ciclovias dão em lugar algum, áreas centrais estão cobertas de mato, não há transporte público ligando o leste ao oeste (e vice-versa), o poder público não consegue definir como coletar e tratar o lixo, a cidade que reluz em sua arquitetura está sufocada de sujeira em seus pedaços mais íntimos. 

O bem-estar e a convivência pacífica da massa humana que se aglomera na urbe devem ser garantidos por leis civilizatórias, que promovam o respeito ao espaço e à liberdade de cada um. Por enquanto há alguns sinais de que podemos chegar à civilidade sonhada por seus inventores. Brasília foi a primeira cidade brasileira a proibir o fumo em locais fechados, tornando a convivência mais saudável; foi a primeira a adotar o respeito à faixa de pedestre. E conta com uma lei moderna e civilizatória para controlar a poluição sonora, a lei 4.092/2008, que alguns detratores chamam pejorativamente de Lei do Silêncio, como se fosse um instrumento de censura e não de organização da convivência no espaço público. 

Há quem diga que o controle da poluição sonora representa o atraso e uma virada à direita, como se o respeito à lei e aos direitos individuais não representassem a civilidade, e como se a selvageria e o caos fossem nossos ideais políticos. A Lei da Poluição Sonora estabelece parâmetros para controle de emissão de som, não apenas para música, e não são valores aleatórios – são aqueles definidos pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que por sua vez segue valores estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), respeitados internacionalmente. 

Extinguir a Lei da Poluição Sonora ou adotar níveis aleatórios para medição do som significará mais um passo rumo à barbárie da qual Brasília deveria se distanciar. É preciso silêncio para ouvir música. O excesso de ruído – seja ele emitido por motores, betoneiras ou caixas de som – não faz bem para a saúde nem para a cultura, assim como a fumaça do cigarro em ambiente fechado nada tem a ver com liberdade individual. Da mesma forma, não se pode alterar o Código de Trânsito para que o motorista obrigado a parar na faixa de pedestre seja pontual em seu compromisso. 

Se os empresários da noite precisam de renda, é mais lógico que se adaptem à lei, e não a lei a eles. Se alguns músicos – não todos – temem o desemprego, que estimulem os empresários a cumprir a lei. Dizem que o nível sonoro permitido é tão baixo que a conversa de um grupo de pessoas é suficiente para superá-lo, mas se esquecem de que o som de uma conversa não se propaga além de alguns metros, enquanto o som amplificado atravessa barreiras e reverbera por longa distância. A situação piora quando a noite avança, e não se pode chamar de careta ou reacionária uma pessoa que se esforça para dormir quando deve acordar cedo no dia seguinte, seja para trabalhar ou estudar. 

Os artistas que combatem a lei 4.092 parecem ignorar que o Teatro Nacional está fechado há anos, assim como o Museu de Arte de Brasília e o Espaço Renato Russo; que a Biblioteca Demonstrativa fechou por falta de manutenção, e a Escola de Música está sucateada e segue o mesmo destino, e a cidade não tem uma biblioteca pública digna desse nome – e depois tentam nos convencer de que a Lei da Poluição Sonora nos empobrece culturalmente... 

A riqueza cultural de uma cidade não está relacionada à poluição sonora. As pessoas que apoiam a lei também gostam de se divertir, vão a bares e restaurantes, ouvem música e participam da vibração da cidade. Por sua vez, aqueles que defendem o som alto precisarão, em algum momento, de silêncio para descansar, os músicos precisarão de silêncio e sossego para criar, para se concentrar, porque o silêncio é saudável e necessário, porque o silêncio faz parte da harmonia. 

Não se pode confundir controle da poluição sonora com cerceamento cultural, como não se pode confundir violência urbana com progresso, trânsito engarrafado com desenvolvimento, ambiente enfumaçado com liberdades individuais. Uma cidade não precisa ser caótica e barulhenta para ser vibrante, assim como a contemplação e o silêncio podem nos enriquecer culturalmente. A sala onde descansa o piano em que meu amigo músico faz os arranjos para seu próximo show será um ambiente mais agradável e produtivo se não houver uma betoneira no apartamento ao lado. 

[Texto publicado na revista Roteiro Brasília, nº 248, de fevereiro de 2016. 
A ilustração, que circula na internet, retirei do blog Habitável Escafandro]

O NOVO QUINTAL DA JORNALISTA

Conceição Freitas na Banca da 308 Sul
À sombra de um flamboyant florido e ao som de bem-te-vis, a jornalista Conceição Freitas descobre Brasília mais uma vez. É ali, à entrada da Superquadra 308 Sul, que ela está construindo seu abrigo seguro, simbolizado pela banca de revistas que comprou logo depois de sair do Correio Braziliense, onde trabalhou por mais de 20 anos. Conceição quer fazer da banca uma referência para si própria e também para a cidade. 

Seria óbvio, mas impreciso, dizer que Conceição é uma jornalista que virou jornaleira. Ao longo de duas décadas, Brasília se espelhou nas suas reportagens e especialmente na coluna Crônica da cidade, em que defendeu, com unhas e dentes, o projeto da capital. E ela não vai parar de fazer isso. Continuará jornalista e a banca será mais que uma banca de revistas e jornais – será um centro de cultura, um ponto de encontro de turistas e brasilienses, mais um laço que a une à cidade. 

Conceição está cheia de ideias e planos, que tenta ordenar. O primeiro passo é se reciclar. Ela reconhece que por muito tempo se fechou numa redoma, voltada para a coluna do jornal, para as pautas, e até para as restrições tecnológicas que o Correio lhe permitia. Agora, convive com os moradores da quadra, com porteiros dos blocos, com os entregadores de jornais, com amigos e desconhecidos que passam para conversar. 

“Eu vim para a rua”, sintetiza. “Foi uma estratégia de sobrevivência. Eu precisava virar rapidamente a página, não poderia ficar indefinidamente à espera de novo emprego. Precisava responder à altura, e a banca me deu a energia de que eu precisava.” 

Uma série de coincidências levou Conceição Freitas a se tornar proprietária da Banca de Revistas da 308 Sul. A primeira é que ela já havia sido proprietária de uma banca, ainda nos tempos de universidade. A segunda é que havia uma banca à venda quando foi dispensada do Correio Braziliense, no final de setembro. E a terceira é que essa banca se localizava numa quadra emblemática, com projeto paisagístico de Burle Marx e única construída exatamente de acordo com o projeto urbanístico de Lúcio Costa. “Turistas e arquitetos do mundo inteiro passam por aqui para conhecer a quadra”, diz Conceição. “É impressionante.” 

“A banca de revistas é um patrimônio público. Acho que Brasília ainda não tem noção do valor dessas bancas, que ficam na entrada das quadras e congregam a comunidade. Os jornaleiros ainda não entenderam isso. Numa cidade com poucos cruzamentos, as bancas podem reunir as pessoas”, observa Conceição, que passou pela banca por acaso e, durante a conversa, o antigo proprietário propôs o negócio.

Ela tem a sensação de que alguma força superior a retirou da redação do jornal e a colocou diante da banca. Mas será que o objetivo do Correio, ao dispensá-la, não seria a de romper com a cidade, expurgando de sua equipe a profissional que melhor a representava? “Não há como saber isso, eles é que devem responder”, diz Conceição. “Mas uma coisa é certa: o Correio não vai tirar Brasília de mim.” 

Conexão epifânica – Há 30 anos Conceição vive em Brasília. Nasceu em Manaus e passou a infância em Belém, onde vivia em bairro pobre, sem saneamento, com esgoto a céu aberto. Um dia, seu pai, Isaías, que vendia terras e viajava muito, lhe deu de presente um álbum de fotografias. “Era uma cidade bonita, com prédios organizados, ruas limpas. Eu folheava aquele álbum sem parar.” 

Adolescente, Conceição sobreviveu ao acidente que matou seu pai na Belém-Brasília. Foi nessa época que ela se mudou para Goiânia, onde se formou em jornalismo e depois começou a trabalhar como repórter policial. Quando o repórter Mário Eugênio, do Correio Braziliense, foi assassinado, em 1984, ela veio para Brasília integrar a equipe do jornal. Passou alguns anos circulando de delegacia em delegacia atrás de notícias. 

Foi nessa época que teve o que chama de “conexão epifânica” com Brasília. “Comecei a observar a cidade, e me lembrei daquele álbum de fotografias da minha infância, e me toquei que a cidade que me encantava era Brasília. Lia muito sobre a história da cidade, que era muito maior em mim que eu imaginava.” 

Conceição já criou um blog para escrever sobre a capital, uma forma de dar continuidade à coluna que conquistou os leitores do Correio, enriquecida agora pelas histórias que vai colhendo na 308 Sul. Também pretende reunir em livro uma seleção dos 20 anos de crônicas e reportagens sobre lugares, personagens e casos da cidade. O tempo é curto para tanta coisa. E Conceição ainda está tentando se atualizar com a tecnologia, porque, mais do que nunca, precisa dela. Enquanto isso, o Blog da Conceição já pode ser visitado neste endereço: https://bancadaconceicao.wordpress.com/

“Ainda tenho resistência às redes sociais. Uso para fins profissionais, mas tenho medo dessa carga de ódio, da exposição exacerbada e vazia”, analisa. Mas reconhece: hoje, o que não passa pelas redes não existe. Foi pelas redes sociais que ela sentiu que os leitores continuavam de seu lado quando o jornal a dispensou. Mais de mil curtidas numa postagem no facebook lhe deram essa certeza e abriram o caminho. 

Apesar de tudo, Conceição acredita que as redes sociais salvaram Brasília de seus agressores. “Foi pelas redes que os defensores de Brasília ocuparam os vazios da cidade, superaram as dificuldades urbanas e se uniram”, diz ela. “As novas gerações se agregaram aos pioneiros. Mas a cidade está muito maltratada, só tem ‘gentinha’ fazendo política. Infelizmente, Brasília não é uma flor de estufa, estamos vinculados ao Brasil. Então, temos de cuidar de nosso quintal.” 

À sombra daquele flamboyant e ouvindo os bem-te-vis, Conceição Freitas cuida de seu quintal. 


[Reportagem publicada na revista Roteiro Brasília nº 245, de novembro de 2015. 
A foto é de Rodrigo Ribeiro]


A ARTE COMO TRANSCENDÊNCIA


 Com 57 anos de carreira, o artista plástico Carlos Bracher transforma cada movimento de suas mãos diante de uma tela em um ritual mágico e transcendente. Essas mãos, que constroem catedrais, enriquecem paisagens, dão vida a naturezas mortas e revelam a alma dos personagens de seus retratos, estão em busca do caminho para a liberdade. “Estamos na vida para isso”, diz ele. “O destino do ser é se libertar. É a razão de nosso tempo de viver.” 

Carlos Bracher é mineiro de Juiz de Fora, onde nasceu em 1940. Em seu trajeto de vida, a relação com a pintura se aprofundou e se tornou fonte de enorme energia. Desde a primeira exposição, realizada em 1960 em sua cidade natal, ao lado dos irmãos Nívea e Décio, até a retrospectiva Bracher – Pintura & Permanência, que os brasilienses podem ver no Centro Cultural Banco do Brasil até 27 de julho, fez inúmeras mostras no Brasil e tornou-se o artista brasileiro que mais expôs no exterior, em galerias e museus da França, Itália, Inglaterra, Holanda, Espanha, Portugal, Rússia, Japão, China, Uruguai, Chile e outros países. 


E, no entanto, ele ainda é o menino que vivia no Castelinho, como a casa da família em Juiz de Fora é conhecida até hoje, enriquecido pela genialidade que a vida e a dedicação à arte fertilizaram e fizeram florescer. Essa fusão de imagens e palavras é fruto de um longo caminho de iluminação, ao longo do qual ele vem plantando sua arte frondosa, regada com poesia. A arte, para Bracher, é uma espécie de religião. Não o que se entende convencionalmente como religião, “essa coisa chata, cheia de regras”, mas a permanente busca do renascer, do sonhar. 


“Quero inventar a minha santidade”, afirma ele. “Com minha vivência, vou chegando a isso. Criando novos signos, complexos, mágicos. Renascendo sempre. Sem limites. Porque a arte não tem limites, não tem regras, não quer chegar a coisa alguma, não quer provar nada. É a minha busca por Deus, que nada tem a ver com religião.”


Seguindo seu caminho, Bracher se define como “um sujeito que não pensa em nada”. Selvagem, sem regras, sem método. “Quero ilações só com a emoção. Pintar, escrever, viver.” Um sujeito que gosta de “conversas de almas”. Nessa busca transcendental, um dia ele chegou a Ouro Preto, cidade mágica entre as montanhas de Minas, que entrou em sintonia com sua viagem interior. 


A riqueza cultural de Ouro Preto, onde a arte brota da terra como nos séculos 17 e 18 brotava o ouro, faz da cidade o ambiente perfeito para Carlos Bracher. A força dessas montanhas embelezadas pelo barroco, pela arquitetura colonial, pelas “igrejas pastoreando casas”, como descreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade, está impregnada em sua pintura. 


Carlos Bracher não tem a intenção de descrever a matéria. “Quero a essencialidade imaterial da paisagem”, afirma. Não é por outra razão que suas telas causam tamanho impacto e despertam no espectador sua capacidade de se elevar, de alcançar a “cena cósmica” que se esconde na essência das igrejas, montanhas, paisagens, personagens dos retratos, incluindo os autorretratos. 

“Não sou um sujeito criativo”, Bracher diz. “Sou apenas um pintor. Pinto as mesmas coisas de sempre.” A exposição no CCBB, que tem cerca de 80 quadros, é oportunidade para quem quiser ver ou rever uma parte de sua obra e também conhecer um pouco da alma deste homem que direcionou sua vida na busca da transcendência pela arte. Lá está seu olhar sobre Ouro Preto, sobre Van Gogh, uma de suas paixões, e sobre Brasília, cidade que o encanta. 


A forte ligação de Bracher com Brasília, retratada por ele em mais de 60 quadros, em 2006, vem desde o berço. Sua avó, Josefina, era vizinha da casa de Juscelino Kubitschek em Diamantina, e sua mãe, Hermengarda, era amiga de infância do futuro construtor de Brasília. A lembrança de Juscelino o emociona. “Um homem notável, que nasceu de uma família muito pobre, mas sempre dedicado à leitura, e que aos 38 anos se tornou prefeito de Belo Horizonte, transformando a cidade, e depois construiu Brasília, um projeto que vinha desde o império.” 


Na exposição do CCBB estão, além de algumas de suas obras mais representativas, alguns ambientes de sua intimidade, como o atelier de sua casa, em Ouro Preto. “Dos meus 74 anos, 44 os passei aqui dentro, sessenta por cento do que sou nesses parcos metros quadrados, o meu atelier”, conta, em um de seus textos para a mostra. 

E também lá está o lugar de sua infância, o Castelinho, sua casa de Juiz de Fora, “ambiente sem regras”, como ele descreve, mas transbordante de arte – podem ser vistos vários quadros de seus irmãos, e no vídeo pode-se ouvir seu pai, Waldemar, ao piano. Esse ambiente familiar tem tudo a ver com a retrospectiva de Bracher, porque a habilidade manual vem de várias gerações. Desde o bisavô suíço, Cristiano, que era floricultor, passando pelo avô Frederico, típógrafo e violinista, o tio Frederico Júnior, pintor; o pai, músico amador que também trabalhou com cerâmica; Lótus Lobo, prima, gravadora de renome, além de Décio e Nívea, irmãos, também pintores. Mas a arte permanece na família, com Fani, a esposa há 50 anos, pintora, as filhas Larissa, atriz, casada com o músico Paulinho Moska, e Blima, jornalista e videomaker. 


A concepção da mostra é de Larissa Bracher, com seleção de Olívio Tavares de Araújo e do próprio artista, produção executiva de Carlos Chapéu e concepção cenográfica de Fernando Mello da Costa. Blima Bracher cuidou da pesquisa, documentação e dos vídeos. “É uma das exposições mais bem estruturadas que já vi”, observa Carlos Bracher, elogiando o trabalho da equipe e especialmente das filhas, que se dedicam a divulgar a obra do pai. “O Brasil tem 9 mil exposições por ano, e essa aqui é uma epopeia, a cenografia, a sonoplastia, um trabalho enorme para mostrar que a pintura é uma arte linda, linda e atual. A Larissa, a Blima e a Fani estão comigo nisso, é muito bonito.” 


Prazer em conhecê-lo, Bracher!
A mostra Bracher – Pintura & Permanência foi contemplada com o Prêmio Destaque Especial 2014 pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), superando exposições de artistas clássicos, como Salvador Dali, Kandinski e Picasso. Foi vista por 120 mil pessoas em Belo Horizonte, 90 mil pessoas em São Paulo e mais de 200 mil no Rio de Janeiro. 

Bracher – Pintura & Permanência
10 de junho a 27 de julho, quarta a segunda, das 9h às 21h
Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB

[Matéria publicada na revista Roteiro Brasília nº 240, junho/2015]

LIVRARIA NA RUA


A Le Calmon Livraria e Café marca a volta das livrarias de rua a Brasília. Meus livros Exília (SP, Dobra Editorial, 2013) e Arqueolhar (LGE/Varanda, 2005) estão à venda lá, assim como livros de outros autores de Brasília. 

O espaço é convidativo e aconchegante. As estantes não sufocam o leitor; ao contrário, sugerem que se tome o livro para folhear e ler algumas linhas. E o ambiente não parece impor ao cliente o best-seller da hora, mas o deixa à vontade para suas próprias descobertas. Talvez seja assim a livraria ideal, já que o livro, antes de ser um produto comercial, é – ou deveria ser – um suporte para o pensamento e a reflexão. 

A Le Calmon Livraria e Café, localizada na quadra 111 Sul, foi criada com esse espírito e marca a volta das livrarias de rua a Brasília, abrindo caminho, quem sabe, para outras iniciativas semelhantes. Criada por um casal de advogados, Adriana Beltrame e Petrônio Calmon, ela faz parte de um projeto que inclui uma editora especializada, a Gazeta Jurídica, com dois anos de existência e já com 60 títulos publicados, e um selo literário, a LeCalmon Editora. Deste, Uvas, Vinhos e Tulipas, romance de Vanda Amorim, e Causos de São Chico e Outras Querências, de Athos Gusmão Carneiro, são os destaques. 

Adriana lembra que o cliente não encontrará nas estantes livros de autoajuda ou religiosos, que não fazem parte da proposta da Le Calmon. Este é mais um detalhe que dá à livraria uma personalidade diferenciada, já que são outros os seus “best-sellers”, como romances de literatura brasileira e estrangeira e biografias. Mas, caso o leitor não encontre na casa o que procura, a Le Calmon aceita encomendas de qualquer tipo de livro.


No andar superior da livraria foi montado o café, que complementa o ponto de encontro de pessoas que têm em comum o prazer da leitura. Os dois ambientes funcionam de segunda a sábado, das 9 às 21 horas.

Le Calmon Livraria e Café
CLS 111, bloco C, loja 22
(61) 3345-6233
De segunda a sábado, das 9h às21h
www.lecalmon.com

UMA NOVA LEITURA DE EXÍLIA

O escritor Alexandre Bonafim, professor de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Goiás (UEG), escreve no Diário da Manhã, de Goiânia (edição de domingo, 7/12/2014), sobre meu livro de poemas Exília


Em Exília (Ed. Dobra), o mais recente livro de poemas de Alexandre Marino, podemos contemplar uma linguagem de tensões, escritura a se esmerilar em si mesma, afiando-se num jogo de associações livres, oníricas, responsável por uma linguagem que, a despeito de voltar-se permanentemente para situações da realidade, tem em si mesma, pelo efeito da função poética, um burilado pergaminho de metáforas. Desde os românticos alemães, passando por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, a poesia tornou-se um emaranhado de associações lexicais raras, em que o processo de metaforização atinge uma agudeza intensa. Dessa forma, Marino não se atenta apenas aos referentes do real, mas sobretudo à própria expressão linguística, o que o torna um poeta sobretudo da consciência verbal. É o que podemos notar nessa pequena obra prima, O cavalo em chamas:

Um cavalo selvagem
branco como o assombro,
carrega uma labareda
a atiçar-lhe o lombo.

Mergulha no nevoeiro
onde uma ponte houvera,
pênsil sobre o penhasco
arrimo de corredeiras.

Este cavalo em chamas
galopa entre as brumas
à margem do precipício
por uma trilha sem rumo.

Atravessador de abismos,
o cavalo meio pássaro
enfrenta dor e cansaço
e a inépcia para o voo.

O fogo, essa estrela
cadente de encontro ao rio,
ilumina o cavalo peixe
sobre as águas bravias.

Para enfrentar o mistério,
incêndio no precipício,
resta a luz do homem
entregue à montaria.

Em seu fim e seu início
a vida costura rotas
nos passos iluminados
em caminhos sem respostas.

Essa assustadora chama
atiça a cavalgada
sobre o rio ignoto
que encanta e ameaça.

O cavalo porta as almas
de peixe, pássaro e fera.
E essa eterna chama,
alimento de quimeras
(p.11-12)

O cavalo a conduzir o cavaleiro é a própria linguagem a impulsionar o poeta, ou em um sentido existencial, o destino a talhar a condição humana. Nesse percurso de abismos, de fascínios, resta sempre a ambiguidade desse cavalo que, paradoxalmente, encarna o pássaro e o peixe, animais de outro habitat. Eis as tensões, enfim, que vão conflagrando a complexidade da própria linguagem, gerando paradoxos e associações encantatórias capazes de agudizar o mistério desse cavalo cujo fundamento, como a existência em si, é pura magia, denso enigma.

Em outro poema de bela fatura, Majestade, temos uma árvore que, assim como em O cavalo em chamas, encarna o real, mas o ultrapassa, instaurando no solo concreto o próprio arroubo do desconhecido:

Esta árvore
te acolhe e consola,
mas também tem fome.

Ao te assustares
com teus arredores,
feitos de não lugares,
sabes onde encontrá-la
para verter-lhe nos braços
teu pranto farto.

Ela também carrega
na carne
sinais do massacre
que te retalhou a pele
e as entranhas.

Mas ao contrário
dos que vacilam
em busca de um sinal
e apodrecem no solo,
a árvore
visita o paraíso
como hóspede de honra
e enfrenta o inferno,
onde deita suas garras.

Esta árvore
renuncia à seiva
para consolar-te
das tormentas e das secas,
e retrata tuas veias,
onde trafega o desamparo.

A única sombra
a protege-la
de teu olhar cruel
é a noite,
escultora de teus pesadelos.

Os pássaros
aninhados em seus galhos
te ensinam:

embora possas
adormecer
recostado em seu corpo,

o teu voo é falso,
teu abraço é falho.

A árvore, cravada em um cerne que não mais é o umbigo do mundo, âmago dessacralizado, possui, ao redor, não-lugares, vazios, desertos inóspitos onde o homem e a árvore têm de estabelecer morada, desvelando-nos uma situação existencial de extrema indigência e fragilidade. Dessa forma, a árvore, tal como o homem, vive em desterro, em exílio, circunstância vivencial que é, na verdade, o húmus de todo o livro e nos traz, em clave pós-moderna, a velha questão do poeta inadaptado, do albatroz baudelairiano sopesado pela força de uma sociedade cujo valor não mais é a beleza, a poesia, mas o dinheiro, a ambição e a usura. No entanto, teimosa, com raízes no inferno e a fronde no paraíso, a árvore resiste aos massacres, tal como o poeta que, também resistente, é um combatente audaz a fazer da linguagem o último refúgio no qual ainda resguarda sua humanidade.

Se no nível psicológico o exílio se desvela pela inadaptação, no plano físico do corpo vislumbramos um processo também angustiante, pois a carne perde a liberdade e enclausura-se em limites claustrofóbicos:

[...]
Este corpo
mal se acomoda
em suas esperas,
mas cercado de fronteiras
revolve o infinito,
porque só o ínfimo
interessa.

Este corpo emudece
no momento do grito
dentro da noite imensa,
[...]

Este corpo desconhece
o espaço que o acolhe
e rejeita,
e sabe a trilha secreta
dos deuses,
feita de abismos
e delicadezas.
[...]

Este corpo
cria um novo sonho
a cada pedaço
amputado,
recria o ninho
a cada exílio,
mas não compreende
mapas e rotas.

[...
Este corpo
se alimenta a esmo
e colhe da vida,
gota a gota,
o mais saboroso
veneno.
(p. 46-48)

O corpo, por fim, esfacela-se, fragmenta-se num amplo processo de desrealização da concretude física humana. Exílio a se findar em múltiplos exílios, cujo fim é a lenta dissolução da vida. Em um mundo inóspito, reificado, onde os processos de desumanização atingem uma agudeza antes nunca vista, o poeta ecoa seu canto dolorido, mas ao mesmo tempo vivo, num grito de prometeu rebelde, acorrentado, mas audaz na perspicácia de sua luta.

Em Exília, portanto, encontramos uma fecunda crítica à situação do homem contemporâneo, feita por uma linguagem cortante, mas altamente lírica, simbólica, escritura que denuncia, mas que também se desvela em desejo, em pulsão de vida, telúrica, força pujante do verbo humano. Alexandre Marino, em Exília, rende-nos, portanto, momentos de alta literatura.

A POESIA SEM FRONTEIRAS DE ANA RAMIRO

Na poesia, a palavra é um horizonte aberto de possibilidades imagéticas. A riqueza da poesia, em contraponto à contenção de palavras, é essa explosão de sentidos que brotam das sílabas, silêncios, ritmos e espaços em branco. Para medi-la, se é que é mensurável, é preciso, mais do que os olhos, abrir o coração.

A poesia de Ana Maria Ramiro é exemplar dessa linguagem sem limites, que oferece a possibilidade da transcendência na leitura. Em Fronteiras da Pele, ela traz para a condição de arte o corpo e seus elementos. E se a perspectiva do prazer, sua razão de ser, provoca a inquietação do corpo, a poesia é fruto da inquietação da alma. Não é por outra razão que o primeiro verso do poema Belzing Bug já revela a mão tateando a possibilidade do rosto, vertida em tarântula, que nesse gesto executa o preciso movimento que tem como fim a saciedade – logo, o prazer.

Sem a pretensão de desvendá-la, o melhor a fazer é mergulhar na poesia de Ana Maria Ramiro e entregar-se ao ritmo de seus versos, deixar que a minuciosa elaboração conduza a leitura. Entre as boas surpresas proporcionadas por esse exercício está o encontro de algumas palavras que se destacam das demais – como se tivessem som mais agudo ou cor mais vibrante – e que se apresentam como guias de viagem. Tais palavras, que o leitor deve assumir o risco de identificar (ou não), darão o tom das diversas sensações proporcionadas por essa entrega. E aqui é bom lembrar que, em poesia, o importante é abrir-se à sensação, mais que buscar o entendimento racional.

Ana Maria trabalha com palavras e imagens delicadamente escolhidas, com esmero e precisão, para elaborar a ideia que o poema contém. Algumas parecem ter sido inventadas especificamente para amalgamar os seus poemas. “Quadro a quadro / o tempo retrocede // descaminham / os pés / sob um solo móvel” (Abissínia).

A autora lança mão do poder das metáforas para intensificar a interação entre palavra e corpo, como no belo Linhas de fuga (“um mergulho // sistemático no fundo do aquário / em busca da escama, no hiato / da pedra, o salto / atávico”) ou em Origami urbano (“A cada vinco, mudanças / na química do asfalto // embotar o gris, romper / a lápide que se estende / sob o casco humano // céu de agapanto”).

Nesse exercício de enfrentar as fronteiras da pele, Ana Ramiro brinca de esfinge e assim se apresenta ao leitor perplexo. Mas ler poesia não é desvendar enigmas; é romper, ao lado do poeta, os limites que a ambos se apresentam, para assim se respirar a liberdade oferecida pelo voo das palavras (“bailarina no globo / da morte, o pensamento fixo / num ponto sem foco”), pelo mergulho na metáfora (“acima da sombra, um pássaro / renega casa, identidade / e se desfolha // nômade”), pelo gozo diante do encontro a realizar (“no deserto da pele (sinuosa) // uma jóia desliza / nua”).

A poesia de Ana Maria Ramiro abre possibilidades de leituras e releituras que absorvem o parceiro-leitor em redemoinho, oferecendo-lhe não respostas, mas perplexidades. Fronteiras da pele prossegue o caminho aberto em seu livro anterior, Desejos de Gaia, um tratado sobre os sagrados calores que alimentam o corpo e lhe proporcionam energia vital. Mas, se no volume de 2007 Ana Ramiro carregava em fina ironia, em Fronteiras da pele ela intensifica a “elaboração do gesto” (“reconhecer-se na fome / do tigre, // sentir seus músculos, / seu hálito, // ler o segredo / estampado // no rajado da pele”). Esse salto além faz de sua poesia uma bela aventura. 

Escrevi este texto em 2009, e Ana Ramiro o publicou no blog Fronteiras da Pele, que criou para divulgar o livro que acabara de lançar. Também o site literário Conexão Maringá, que infelizmente não existe mais, o publicou. Sempre gostei muito da poesia da Ana e a poesia nos fez amigos. Ana estava morando há alguns anos em Portugal, onde o marido Dario Sensi, diplomata, ocupa cargo na Embaixada do Brasil. Ana Ramiro faleceu em Brasília, no dia 19 de julho. Uma grande perda para a poesia e os amigos. Uma homenagem é muito pouco, mas é o possível. 

O PRESENTE DE NILTO MACIEL

No dia 27 de julho, ao voltar para casa depois de uma ausência de duas semanas, encontrei na caixa de correspondências um envelope pardo que imediatamente identifiquei como um livro. Recebo muitos livros; alguns de amigos, outros de desconhecidos em retribuição aos que eu próprio envio. Livros viajam sem parar. Antes de abrir o envelope, verifiquei o remetente: o cearense Nilto Maciel, inquieto autor de mais de uma dezena de livros, entre romances, contos, crônicas, ensaios, poesia. 

Nada de estranho, a não ser pelo fato de que Nilto Maciel faleceu no dia 29 de abril, três meses antes. Verifiquei a data de postagem do envelope: 14 de abril de 2014. 

O presente que eu acabava de receber de Nilto, que morou durante muitos anos em Brasília e que ultimamente escrevia e espalhava seus livros diretamente de Fortaleza, era o volume Sôbolas manhãs, coletânea de ensaios sobre literatura, escritores, memórias e outras reflexões sempre interessantes com que presenteava os amigos a curtos intervalos. Por enquanto, não farei maiores comentários sobre o conteúdo, pois não terminei a leitura. 

Dentro do livro, encontrei um bilhete digitado, rubricado com dois rabiscos e datado de 10 de abril, 20 dias antes de seu corpo ser encontrado na sala de sua casa, no bairro Monte Castelo, em Fortaleza. “A Alexandre Marino, presenteio este exemplar de Sôbolas manhãs”, li no bilhete. “Tenho dúvida de ter ou não mencionado seu nome em algum dos artigos.” E prosseguia: “Tenho certeza de ter escrito um livro de boas ideias ou, pelo menos, com o melhor dos intuitos: o de divulgar os escritores brasileiros avessos ao ‘jornalismo de resultado’, à crítica tendenciosa e aos vendedores de pedras falsas.” 

Certamente permanecerá um mistério o caminho percorrido pelo livro, desde que o próprio Nilto Maciel o levou aos correios até que o apanhei na caixa de correspondências. É possível que o volume tenha ficado esquecido em algum centro de distribuição, caído atrás de uma mesa, até que, quem sabe, o espírito de Nilto cutucasse um carteiro e exigisse a entrega. Onde Nilto estiver, agradeço o cuidado. E agradeço também que ele me tenha incluído na seleta lista de “escritores avessos aos vendedores de pedras falsas”, um privilégio e tanto. 

[crônica] O INFERNO

Ao anunciar os jogadores que defenderão o Brasil durante a Copa do Mundo, o técnico Luiz Felipe Scolari garantiu: “Irei com eles até o inferno.” Não cheguei a ler a lista, mas fiquei intrigado com a frase. Que inferno seria esse? 

Alguns de meus ancestrais levaram os clichês bíblicos ao pé da letra. Desconfio que meus avós e minhas tias acreditavam piamente na existência do Inferno e do Paraíso, este como o lugar do júbilo eterno, suprema premiação a quem viveu uma vida voltada para o bem, a obediência a Deus e principalmente ao sacrifício, à provação, à vitória sobre as “tentações”. Tentação, no caso, englobaria quase tudo que dissesse respeito ao prazer, e aqui me vem à memória um verso do poeta inglês John Donne, traduzido por Augusto de Campos e eternizado no Brasil por Caetano Veloso: “Todo prazer provém de um corpo (como a alma sem corpo) sem vestes.” O texto no original não é exatamente assim, mas o sentido é o mesmo. 

O paraíso, o prazer, o inferno. E, diante da promessa da redenção eterna, tínhamos também a ameaça do sofrimento eterno, se não resistíssemos. Aos seis anos, eu me preparava para a primeira comunhão, que diziam ser a “chegada de Deus” a meu corpo. Para me treinar, minhas tias me forçavam a “comungar” com hóstias que os padres da Igreja de Santo Antônio lhes davam, obviamente antes de “receber” a presença divina. Um dia, me engasguei e cuspi aquela massa insípida. Meu avô me encarou com olhar ameaçador: “Se você fizer isso lá na igreja, vai parar sabe onde?”, apontando o indicador para o chão, mostrando o caminho do inferno. Pobre menino de seis anos, que nem conhecia o mal do mundo. 

Eu, na minha peculiar ingenuidade, acreditava, ia à missa, rezava. Fiz a primeira comunhão, engoli a hóstia direitinho, e a partir dos sete anos cumpria todos os domingos o ritual da missa. Na época, comungava-se em jejum. As missas eram muito demoradas, e normalmente eu não conseguia esperar pela hora da comunhão: morto de fome, caía desmaiado antes que o padre distribuísse o “corpo de Cristo”. 

Até os 14 anos, vivi a rotina de comungar nas missas dominicais, inventando pecados para o padre sempre que passava muito tempo sem me confessar. Achava que era melhor inventar excessos que receber a hóstia com algum pecado esquecido – e ser castigado por aquele Deus barbudo com cara de mau. Eu não era muito criativo com essas invenções – “briguei com meus irmãos, desrespeitei minha mãe”, etc, etc. Ah, tinha um pecado muito interessante – “Tive maus pensamentos”. Isso significava desejar alguma garota, coisa que eu nem sabia direito o que significava, pois, afinal, sexo era assunto tabu. 

O inferno é uma instituição humana, assim como o Paraíso. O poeta Dante Alighieri, nascido em Florença, cidade eterna, no século 13, percorreu o inferno, o purgatório e o paraíso, encontrou conhecidos e desconhecidos e voltou à terra para narrar sua viagem, em versos, num dos monumentos da literatura universal, A Divina Comédia. E algo que me chamou a atenção é que no Inferno de Dante não há apenas fogo. Há, por exemplo, uma lama imunda onde alguns espíritos vivem sua provação. 

Pensei em tudo isso ao tomar conhecimento da frase de Scolari. E desconfio que ele não precisará ir muito longe se tiver de acompanhar seus pupilos ao inferno. O inferno está muito próximo – dele e de nós. 

[Imagem: uma das ilustrações de Salvador Dali para A Divina Comédia, de Dante Alighieri]