[história afetiva] HÁ VAGAS - OU HAVIA?


Capa da terceira edição
A revista literária Há Vagas circulou em Brasília de setembro de 1982 a agosto de 1985, em três edições, que contaram com o apoio da Universidade de Brasília. Seus fundadores foram Armando Veloso, Chico Leite, José Adércio Leite e Paulo Joe, com a participação de Regina Ramalho, que fez o projeto gráfico da primeira edição, e um grande número de colaboradores. No início da década de 1980, o movimento literário de Brasília era muito intenso e os criadores da revista conseguiram agregar grande parte dos escritores que circulavam na cidade. Na época, a perspectiva de mudanças políticas, com o fim iminente da ditadura militar, e a capital ainda em busca de identidade, com apenas 22 anos de inaugurada, apontavam para um horizonte sem limites e muita expectativa também na cultura.  

A primeira edição de Há Vagas trazia na capa um desenho que vazava para a contracapa, em que se viam todos os colaboradores da revista segurando a carteira de trabalho. Quem assinava o editorial, sob o título O homem é o lobby do homem, era o jornalista e poeta Tetê Catalão. Apesar de rico em metáforas, ainda hoje o texto não deixa dúvidas quanto à conjuntura política e econômica da época. “A pior recessão será aquela capaz de desfibrar sonho por sonho, letra por letra, carícia por carícia”, afirmava logo na primeira frase. “Em pleno desemprego nacional, afirma-se que HÁ VAGAS.” O país vivia os últimos suspiros da ditadura militar, em meio a crise econômica, mas ainda faltavam três anos para que o último presidente de fardas entregasse o poder. 

Capa da primeira edição
“Quem achar que deve, se apresente. Afinal, quem diz que você pode ou não pode é você mesmo: se a vaga é tua, vai na vaga. Abre o vago-simpático e brilha vagau no brinquedo de estar lúcido.” Tetê Catalão fechou assim o editorial, e deu gás para que alguns escritores que enviaram colaborações à revista e não foram publicados protestassem contra a “falta de vagas”. No entanto, em suas três edições a revista veiculou textos de grande qualidade literária, de autores de diversos estilos e propostas, de vários pontos do país, comprovando que as portas estavam, de fato, abertas. 

Primeiro número – Um dos destaques da primeira edição de Há Vagas era o poeta Francisco Alvim, participante do movimento literário brasiliense, nome importante da poesia dos anos 70. Ele contribuiu com poemas e uma interessante entrevista, em que refletia sobre a ainda recente poesia marginal. 

Entre os autores de contos, poemas e ilustrações publicados no primeiro número estão, além de seus criadores e editores, Ariosto Teixeira, Cassiano Nunes, Cesário de Sousa, Eduardo Rangel, João Borges, Jô Oliveira, Luis Eduardo Resende (Resa), Luís Martins, Paulo Andrade e Turiba. 

Após a publicação do primeiro número de Há Vagas, houve uma dissidência de alguns escritores desse grupo, que se afastaram para criar a Bric-a-brac, outra revista literária de grande importância na história cultural de Brasília. 

Capa da segunda edição
Segundo número – Na capa, o artista plástico Felix Valois reproduziu graficamente uma frase poética pichada em um muro de Brasília: “Não sei como as pal-/avras/ ainda são feitas/ de silenci-os!” O segundo número da revista foi editado por Chico Leite, Armando Veloso, Domingos Pereira Netto e Alexandre Marino, com a colaboração de Paulo Joe (São Paulo) e Theophilus (Fortaleza), e edição de arte de Milton Goes, Resa, Jô Oliveira, Evandro Abreu, Renato Ferrari e Rômulo Andrade. A data de edição é primavera de 1984. 

Colaboraram no segundo número, além dos editores, Adriano Espinola, Cassiano Nunes, Carlos Herculano Lopes, Evandro Abreu, Lourenço Cazarré, Nirton Venancio, Patt Raider e Luís Turiba, entre outros. Chico Leite, Armando Veloso e Alexandre Marino conduziram a entrevista desta edição, com o poeta Affonso Romano de Santanna. 

Uma das curiosidades desta segunda edição foi um conto cedido pelo poeta Paulo Leminski, de título Sintomas. De Leminski também foi publicado um poema, sem título. 

Marino, Chico, Domingos,
Goes, Armando
Outra curiosidade foi o poema enviado por Waly Salomão, O cólera e a febre. O poema fala de uma situação de tédio num domingo de sol. Waly teria ficado furioso ao ver a ilustração de Milton Goes para seu poema, cuja primeira estrofe trazia os versos “Um bode imundo irrompe/ (...) e perante minha pessoa a fera/ estaca e já dentro de mim se esmera/ (...)”. Na ilustração, Goes usou a imagem literal de um bode, o animal, que se transforma numa seta e fere o peito de um homem. Waly talvez não tenha compreendido que, neste caso, o bode foi a metáfora da metáfora, e o realismo reforçou a imagem figurada. 

Terceiro número – Aquela que seria a última edição de Há Vagas, de agosto de 1985, foi feita por Armando Veloso, Chico Leite e Alexandre Marino, com a colaboração de Paulo Joe e Theophilus. A edição de arte ficou a cargo de Milton Goes e Chico Leite. Cristina Bastos teve importante contribuição em todo o trabalho. A imagem da capa, do fotógrafo Juan Pratginestós, mostra um casal sentado nas arquibancadas vazias do antigo anfiteatro do Parque da Cidade, cenário do lendário Concerto Cabeças, e na contracapa as mesmas arquibancadas, lotadas, ambas fotos feitas do alto. 

O poeta Ferreira Gullar foi entrevistado pela jornalista Patrícia Assis. A professora Maria Duarte escreveu um ensaio sobre arte e cultura nos novos tempos que se inauguravam no país. Encartadas na revista vinham as Breves anotações para um provável manigesto, com texto final de Chico Leite, que discutiam a proposta literária dos editores da revista, voltada para uma poesia de linguagem universal, uma “viagem da pedra primitiva ao neon”, revelada nos versos de Paulo Joe: “Nem vanguarda, nem retaguarda, apenas o que o coração aguarda.” 

Entre os colaboradores desta edição estavam ainda Alice Ruiz, Antonio Barreto, Guido Heleno, Nevinho Alarcão, Nilto Maciel, Paulo Leminski, Reynaldo Jardim, Thais Guimarães e Zaida Regina. 

Há Vagas reuniu, em suas três edições, nomes de grande importância da literatura que se fazia na época em Brasília, publicando ainda escritores que se destacavam em outros estados por uma postura de inquietação e questionamento. Novos tempos chegavam. Há Vagas cumpriu sua parte. 
 

O NÃO-LUGAR DA POESIA

A escritora Paula Cajaty, do Rio de Janeiro, escreve sobre meu livro de poemas Exília, na edição 165 do jornal de literatura Rascunho, de Curitiba (janeiro/2014). Leia abaixo a íntegra de seu texto.

 
Muito embora tenha finalizado seu sexto livro em 2009, Alexandre Marino trabalhou em Exília durante três anos, até a sua publicação, em junho de 2013. Nestes mais de sessenta poemas, distribuídos em cinco partes (“O homem”; “O exílio”; “O amor”; “O tempo”; “A morte”), Marino realiza o deslocamento do leitor, tornando-o alheio à condição humana, em uma espécie de despertencimento do mundo.

Na verdade, para escrever poesia há mesmo essa necessidade de exilar-se, colocar-se distante e à parte — sair do lugar de conforto para olhar o mundo sob outra perspectiva. A poesia é, pois, o próprio lugar de exílio do poeta, mas um exílio voluntário, um deslocamento de tempo e lugar em que se permitem reflexões impossíveis aos que se encontram imersos no turbilhão da vida.

Exília é o lugar que não há, longe da terra que acolhe e expulsa sonhos, o vazio além da janela, o ninho diversas vezes recriado. Fica fácil, portanto, identificar a razão da repartição em cinco partes no livro do poeta mineiro: exilando-se da condição de homem, o eu-lírico se transforma em poeta; exilando-se do mundo, o poeta encontra seu lugar nesse exílio; afastando-se das paixões que regem o homem-consumidor e competidor, o poeta descobre a mansidão e eternidade do amor; e, por fim, distanciando-se da vida, efêmera, escreve sob a égide do tempo e da morte, inexoráveis e imutáveis.

Caixa de vidro

O eu-lírico de “O homem” é um deus aleijado, andarilho, criatura sem norte, viajante perdido e cigano no deserto. É náufrago de si mesmo, intruso em seu próprio habitat. O título da obra, embora não conste do dicionário, é a junção da palavra “exílio” com “Brasília”, cidade onde mora o poeta. Mas Alexandre explica que não se sente exilado em Brasília: na verdade, ele se sente exilado em qualquer cidade, pois, como na história do rio cujas águas sempre são diferentes, pessoas e cidades vão mudando com o tempo. Nós mudamos, a cidade muda e logo nos sentimos estranhos e deslocados em nosso próprio bairro.

A sensação de estranhamento, própria do efeito da leitura poética, é fruto desse auto-exílio: estranhamos o que não nos é próximo, desconfiamos daquilo que não nos é familiar, duvidamos de tudo o que muda — embora a natureza das coisas seja exatamente a mudança.

Em “O exílio”, Alexandre perscruta as condições em que esse homem, alheado de tudo e até de si mesmo, passa seus dias: “Nunca estou onde estou/ fogem-me abraços, harmonias e desalinhos”. É “terra estéril/ onde planto sonhos”, o mundo lá fora que insiste em invadir esconderijos, sol e vida que atravessam nossas celas de vidro. Como o próprio autor declara, é essencial o sentimento de desenraizamento que atormenta o poeta e explica a importância de que exista um lugar dentro de cada um de nós que possa ser esse refúgio pessoal e utópico. A poesia é, então, a ferramenta de criação do espaço mental e espiritual que salva os sentimentos do homem de um mundo inóspito e devorador.

Aliás, não é somente a poesia que promete esse lugar do sagrado e inatingível onde guardamos nossas sensibilidades, onde admiramos a rosa delicada da besta-fera ameaçadora e arredia que criamos para sobreviver: na filosofia iogue e nos estudos rosacrucianos há esse recolhimento a um outro espaço/tempo, diverso e distante do espaço/tempo do mundo. No estudo rosacruz, por exemplo, chega-se a erigir um pórtico mental que deve ser atravessado pelo aprendiz todas as vezes que inicia seu processo de meditação: o pórtico representando a entrada humilde do peregrino em um novo local, feito de silêncio, magia e beleza. Assim como poetas, iogues e rosacrucianos buscam esse auto-exílio como forma de expandir suas sensibilidades, um lugar de proteção contra barulhos, aborrecimentos, mudanças: uma caixa de vidro para guardar o que há em nós de mais precioso e frágil.

Pela filosofia iogue, através da meditação visitamos esse auto-exílio, que não é somente um lugar para entesourar nosso interior sagrado, mas lembrar de nossa própria essência, ouvir o chamado interno, ter contato com nossas verdades, e sobretudo não nos distanciarmos — em nome de necessidades materiais — de tudo aquilo que realmente precisamos para resgatar a felicidade.

A significação dos poemas de Alexandre também remete a uma espécie de exílio urbano, à falta de identidade de quem habita a urbe, metrópole sem rosto. Em suas entrelinhas, lemos a solidão compartilhada da grande cidade e a dissolução do indivíduo transformado em cliente, quando o homem é investido de condição financeira e desprovido de sua condição humana, substância lírica que insiste em resistir como flor nascida numa fenda de concreto.

Libertação

Na seção dedicada ao amor, um bem precioso e frágil, o poeta encontra histórias metafóricas, incorpóreas, perigo e beleza. Amor pode ser fantasia e longa espera, caminho imponderável do acaso, mistério impossível de enunciar, aquilo que as vozes emudecem. Amor pode ser aquarela, cheiro das tardes quase comuns, um baile de borboletas amarelas, o céu rosa enquanto guardamos algo dos pássaros apressados em busca de abrigo.

O modo singular e transgressor como o poeta lida com os poemas de “O homem” e “O exílio” cede e suaviza quando encontra “O amor”. Aqui, Alexandre descortina o primeiro poema com sua face mais cruel, camoniana: quando, impuro, tem mãos sujas, e quando, insensível, se diverte “enquanto ela chora no quarto ao lado”, reavivando a antiga “ferida que dói e não se sente”. Mas o poeta reencontra o amor divino, aquele paciente e bondoso, que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.

Nos dois últimos capítulos, “O tempo” e “A morte”, a poesia se exibe como momento de lucidez, uma forma de libertação da vida prática. A vida é “fútil fortuna, ilusão de eternidade”, pó que voa sobre um lago de águas plácidas. E a morte, animal de estimação quase palpável, é sombra do invisível, parece que dorme ou que desaparece, mas a qualquer momento volta a sorrir e nos pede companhia pela eternidade. A morte é algo que cabe numa caixa de sapatos, é a imagem da mãe sentada no alpendre, o vento nas árvores, o telhado vazio de pássaros. As metáforas de Alexandre Marino aqui são profundas, preciosas.

Na linguagem poética, uma razão sobre-humana sobrevoa toda a racionalidade que aprendemos. Na poesia, sob o signo das sensações, retiramos a máscara que nos alheia a todo o tempo de nossa real condição — fugaz, frágil, efêmera — e nos encastela entre paredes de concreto, vidro e metal.

Alexandre Marino transita com desenvoltura pela linguagem poética, aberto para todas as linguagens e estilos, dialogando com a poesia drummondiana, o lirismo de Fernando Pessoa, a melancolia de Sophia de Mello Breyner e, ao mesmo tempo, evocando a memória de obras clássicas, como A Bela e a Fera ou O corcunda de Notre Dame. Em seus poemas, o autor foge da crueza e crueldade da cidade e do cotidiano para se refugiar em sua Exília, de onde escreve com paixão, força, riqueza de sensações e uma profunda experiência de vida.
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[crônica] A MAIS LONGA VIAGEM

Algumas notícias, lidas aleatoriamente em jornais recentes, dizem muito sobre os mistérios da humanidade. Um homem armado entra num edifício da Marinha em Washington e mata 12 pessoas. Um ataque com armas químicas contra uma população civil na Síria deixa mais de mil mortos. E, pela primeira vez na história, um objeto construído por seres humanos atravessou os limites do sistema solar.

O objeto em questão é a sonda Voyager 1, que acaba de chegar ao abismo do espaço interestelar, bela e poética expressão usada pelos cientistas para descrever os limites entre a área do cosmo sob influência de nossa estrela, o Sol, e o espaço infinito por onde essa pequena heroína navegará até os domínios de uma próxima estrela.

Será uma longa viagem. A previsão é que ela só alcance um planeta de outro sistema dentro de 40 mil anos. Lançada pela Nasa a 5 de setembro de 1977,  percorreu até agora 19 mil milhões de quilômetros, e por volta de 2025 perderá a capacidade de enviar informação à Terra. Os dados que ela tem enviado levam 17 horas para chegar a nosso planeta. As últimas fotos que mandou, em 1980, retratavam cenas inimagináveis de Júpiter e Saturno, incluindo as duas luas de Júpiter. Depois os cientistas desligaram sua câmera, para poupar energia, pois ela demonstrava capacidade de ir muito mais longe do que no início se esperava.

O maior especialista na missão Voyager, Edward C. Stone, tem 77 anos e está no projeto desde 1972. Ele não saberá o que acontecerá quando a sonda chegar a outro planeta. Nem eu. E nem vocês, caro leitor, cara leitora. Mas ele acredita num futuro melhor para a humanidade. Eu gostaria muito de lhe perguntar o que ele pensa dos cientistas que criam para a indústria bélica projetos de armas cada vez mais mortais. Ou daqueles que descobriram o mecanismo do gás sarin sobre as células humanas, fazendo dele uma arma terrivelmente mortífera.

Quando pensei na contradição entre os feitos heroicos e nobres dos humanos e seus gestos mais mesquinhos, folheei alguns jornais em busca de feitos dignos de admiração. Mas nossas páginas estão coalhadas de tragédias, de tal forma que não há espaço para mostrar exemplos dessa nossa face quase oculta. 

Tendo a acreditar que o mal nos seduz. Tanto que notícias de acidentes, tragédias, crimes, ainda que muito distantes de nossa realidade imediata, nos atraem mais do que a viagem da Voyager. E não é por ela própria estar distante, pois isto é o que ela tem de mais sublime.

Tento imaginar o que pensarão sobre nós os seres inteligentes que habitarem o distante planeta onde a Voyager pousará dentro de 40 mil anos. Talvez, em futuro tão inimaginável, a Terra nem exista mais, ou tenha sido abandonada, em ruínas, por seres que no futuro precisarão de outro planeta para destruir. Mas quem receber a Voyager terá informações, ainda que falsas e incompletas, sobre o que somos hoje. Ela carrega, por exemplo, em discos analógicos, uma gravação da Quinta Sinfonia de Bethoven, um dos pontos altos da criatividade humana. Terão exemplos de sons da Terra, como trovões, vulcões, vento, chuva, e ouvirão vozes de animais como hienas e elefantes. Também serão saudados em 55 idiomas diferentes.

Só não saberão que os homens, pelo menos os de hoje, são incapazes de viver em paz. Nossa vocação belicosa foi mantida em segredo.  


[Ilustração: sonda Voyager 1 - Nasa]

[crônica] AS ASAS DA PASSARINHA

Bárbara era uma adolescente em 1959. Seus pais, Ruth e Elliot, achavam estranho que a garota gostasse de brincar com bonecas. Donos de uma fábrica de brinquedos, tiveram a luminosa ideia de criar uma boneca adolescente, que combinasse melhor com a filha. Assim nasceu Barbie, obra do designer Jack Ryan e principal produto da Mattel, a fábrica localizada em Nova York.

A bonequinha alastrou-se pelo mundo e pelos armários de crianças e pré-adolescentes, e virou sonho de consumo de meninas que sonham com o universo adulto. Com seios volumosos, cabelos lisos escorridos e corpo longilíneo, bem ao estilo norte-americano, ganhou, ao longo dos anos, um enorme guarda-roupa e até um namorado, sujeitinho bombado e mal-encarado, que as menininhas guardam nas gavetas ao lado da Barbie.

Nascida em 1959, Barbie tornou-se, mais que um brinquedo, um símbolo da mulher produzida e submissa aos modelos de beleza estabelecidos pela mídia. Já tem lá seu meio século de idade, e parece cada vez mais viva na mente de outras adolescentes – incluindo aí moças que já passaram dos vinte ou trinta. A mente feminina é um mistério.

A Barbie é uma espécie de modelo de mulher que vai na contramão da natureza, enchendo-se de plásticos e se esquecendo de que o ser humano é, na verdade, feito de carne, ossos, suores, pelos e cheiros, com todas as suas semelhanças, diferenças, virtudes e defeitos, sinais, anormalidades, biótipos.

É muita pretensão: a indústria da beleza, que enche seus cofres ao vender produtos para a mulher, agora se propõe a fabricar a própria mulher. Na linha de montagem, as barbies estão vivas. Enquanto os corpos vão passando pela esteira, cirurgiões plásticos, depiladores, dermatologistas, cabeleireiros, como operários numa fábrica de automóveis, vão transformando a imperfeita e sedutora mulher de carne e osso numa insossa boneca de plástico.

Cosméticos eliminam os cheiros e ceras eliminam os pelos. Os cabelos, lisos, ondulados ou crespos, adquirem o mesmo aspecto padronizado e artificial. Os corpos são esculpidos pelos cirurgiões, que não são artistas, como o anônimo escultor que fez a Vênus de Milo, uma sedutora mulher de pedra que perdeu os braços. São apenas comerciantes de silicone.

Até meninas adolescentes já entraram nessa onda. O número de adolescentes entre 14 e 18 anos que se submetem a cirurgias plásticas mais do que dobrou nos últimos quatro anos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Foram 91.100 cirurgias em 2011. O Brasil é o segundo país do mundo nesse tipo de intervenção, atrás apenas da pátria da Barbie. A lipoaspiração e o implante de silicone nas mamas são as mais comuns, tanto para adultas quanto para adolescentes.

O dado mais impressionante, no entanto, é que, de acordo com dados da mesma entidade, mais de 9 mil brasileiras se submeteram em 2011, de acordo com os números mais recentes, a cirurgias plásticas de correção da vagina – a chamada labioplastia. O Brasil é campeão no procedimento, com 16% do total praticado no mundo. Estão cortando as asas da passarinha!

E pensar que em meados do século passado as mulheres lutaram tanto para deixar de ser um objeto sexual... Se naquele tempo ser objeto tinha um sentido figurado, agora, em pleno século 21, o sentido se torna cada vez mais literal! 


[Ilustração: batkatcreations.com]

[cinema] UM FRACASSO MONUMENTAL


Plano B: Brasília sem máscaras
O documentário Plano B, de Getsemane Silva, conta a história de um gigantesco fracasso. Ele parte do quase inacreditável caso de censura do filme Contradições de uma cidade nova, vetado pelo próprio patrocinador, e que teve uma única exibição pública. De 1967, quando o filme deveria ter sido lançado, até 2013, quando o documentário de Getsemane será visto pela primeira vez, foram 46 anos de consolidação do fracasso que a empresa italiana Olivetti, a patrocinadora, tentou esconder. 

Plano B é um dos três filmes brasilienses classificados para a 46ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2013. O documentário resgata a história do filme perdido de Joaquim Pedro de Andrade, um dos ícones do Cinema Novo, que, logo após sua exibição no mesmo festival, em 1967, foi apreendido pela censura da ditadura militar. 

Produzido sob encomenda da Olivetti, Contradições de uma cidade nova não chegou a ser finalizado, porque os diretores da empresa retiraram o patrocínio quando viram a cópia de trabalho. Mesmo assim, o filme foi inscrito no Festival de Cinema de Brasília naquele ano, mas, apreendido pela censura, tornou-se uma raridade. “Finalmente vou ver esse filme”, exclamou a escritora Edla Van Steen, ao ser procurada por Getsemane Silva para falar sobre a obra. Na época, ela era assessora cultural da Olivetti. 

“Vi esse filme quatro anos atrás”, conta Getsemane Silva. “É um filme lindo, e achei interessante investigar a história do veto. Além disso, o filme é extremamente atual, foi como ver uma profecia do passado acontecendo no presente.” Havia três cópias do filme, restaurado recentemente. Para que fosse feita a restauração, a Olivetti italiana cedeu os direitos, desde que fossem retirados o nome da empresa e os dizeres: “A Olivetti, produzindo este filme, tem a intenção de salientar a coragem e a imaginação com que foi resolvido, de modo contemporâneo e inusitado, problema tão antigo quanto a história da civilização: projetar e construir uma cidade.” 

Plano B reforça e intensifica o desnudamento das elites brasileiras feito pelo filme de Joaquim Pedro de Andrade. Foi o preconceito e o desprezo pelas classes menos favorecidas que levaram ao fracasso uma das ideias mais geniais do século XX. “A atitude de exclusão, arraigada na classe média brasileira da época, seria a grande barreira para realizar um projeto modernista em sua totalidade”, reflete Getsemane. “O modernismo foi negado aos mais pobres. Foi um projeto de elite, vendido ao povo como mito de modernidade e igualdade”.

Chega a ser hilária a narração que se ouve aos 45 minutos de Plano B, retirada da propaganda oficial da época, com imagens atuais e da década de 1960: “A mística de Brasília contamina o país. A jovem cidade do Planalto Central é a estrela guia do futuro, a menina dos olhos do Brasil. Uma equipe dedica-se à arte de fazer cidades, dentro de perfeitas soluções dos problemas urbanos. Será a cidade dos parques e avenidas intensamente arborizadas, (...) como se no Planalto Central brasileiro a humanidade tivesse atingido a última expressão da civilização moderna.” 

O filme de Getsemane colhe depoimentos de várias pessoas que trabalharam no filme de Joaquim Pedro, como o roteirista Jean Claude Bernadet e o poeta Ferreira Gullar, que fez a narração. E de pessoas que trabalharam na implantação da capital, como a assistente social Maria Abadia, ex-governadora do DF, que atuou na remoção de favelas à época da inauguração. Ela se lembra até hoje “das ruas empoeiradas, com caminhões pipa distribuindo água entre os barraquinhos”. 

Os “barraquinhos”, que cercavam os edifícios monumentais de Brasília, foram transferidos para um cerrado absolutamente vazio, a quilômetros de distância. “Brasília foi defendida como mito, mas a cidade real é bem diferente”, observa Getsemane. “Apenas 8% da população do DF vive hoje no Plano Piloto. Uma micro minoria vive o mito do modernismo.” 

Este texto foi publicado na revista Roteiro Brasília, edição 220, de setembro de 2013

EXÍLIA NO LEITURAS


O jornalista Maurício Melo Júnior comenta, no programa Leituras, da TV Senado, os livros O jugo das palavras, de Raul da Távola, e Exília, deste que lhes escreve.

[estante afetiva] À BEIRA DE QUASE NADA

Os personagens de Sérgio Fantini parecem viver numa comunidade onde todos têm muito em comum. Estão sempre na pindaíba, mas encaram a dureza da vida com bom-humor; andam à toa pela cidade; tomam cerveja em botecos pé-sujo; comem um pastel; esperam ônibus de madrugada, gostam de filosofar enquanto esperam passar a chuva. E, no entanto, quando essas figurinhas comuns circulam pelas páginas dos livros de Fantini, há sempre alguma coisa fora do comum para acontecer. E, mesmo que não aconteça, a gente prossegue na leitura até o fim.

Qual é o segredo? Em Novella, seu livro lançado recentemente pela Jovens Escribas, de Natal, a lição está posta. Por que Novella? – ele responde num prefácio que mais se parece uma peça de ficção. Você pode até pensar que ele está mesmo enrolado com processos judiciais, mas desconfie. Sérgio Fantini já enganou até a comissão editorial de uma grande editora, ao enviar-lhes um conto em forma de carta – eles acharam que era mesmo uma carta e publicaram seu conto com nome trocado. É uma história divertida, se quiser saber os detalhes, peça a ele que lhe conte. 

Novella começa com duas histórias sobre personagens muito comuns, tipo aqueles que parecem nada fazer que valha uma história, mas depois Fantini começa a plantar umas armadilhas no caminho do leitor. Em Sua, ele mostra que em pouco mais de duas páginas é capaz de transformar uma figura absolutamente fútil numa boa personagem, ou em personagem de uma boa história. Em Daqui pra frente, ele invoca Wander Piroli para construir um mini-conto instigante. Mão certíssima.

Há outras histórias assim; não vou falar de todas. Mas é preciso falar de Praia da Estação, um manifesto pela liberdade, pela alegria e pela vida que ele transforma em texto poético, e de Dorinha, uma historinha feliz vivida por personagens simples, não simplórios, que parece advertir o leitor que tudo aquilo que ele almeja para sua aposentadoria é uma grande bobagem. No final, vem a história mais longa, Muito silêncio (por nada), mas essa eu vou deixar engatilhada para o leitor encerrar o livro. Vamos dizer, Maria, que a vida é feita de equívocos, mas sempre nos resta a fantasia.

MARX HAMLET BERMAN MARINO


Uma análise do escritor W. J. Solha sobre o livro de poemas Exília:
 
"  Marx diz sobre a época em que viveu, no Manifesto de 1848, que TUDO QUE É SÓLIDO SE DESMANCHA NO AR, frase que se tornou título de uma obra bem mais recente, de Marshall Berman, em cujo prefácio se lê:

São todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança — de autotransformação e de transformação do mundo em redor — e pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

“Todos”, ele diz. Shakespeare, venerado por Marx, faz Hamlet se lamentar, ante a situação que vive (conforme tradução de Luís I, de Portugal):

Ultimamente, nem sei por que, perdi toda a minha alegria, renunciei a toda a especie de exercicio; e sinto na alma uma tal tristeza, que esta maravilhosa machina, a terra, me parece um esteril promontorio, este esplendido docel, o céu, esse magnifico firmamento suspenso sobre nossas cabeças, essa abobada sumptuosa, onde brilha o oiro de innumeras estrellas, tudo me parece um infecto monturo de vapores pestilentes.

E eis o “clima” de Exília, conforme seus melhores versos:

A cidade
é o lado de fora dos muros do cemitério.

(Definição de cidade, pág. 49)

Este é meu corpo (que) a cada retorno a ancestrais paisagens
descobre jamais ter estado lá.

(Amálgama, pág. 52)

Se nem meus limites
dão forma ao que sou,
onde procurar
o que não sou?

Infinitos Limites, pág. 60)

Quando me acerco da cidade sonhada
não está lá

(A cidade Sonhada, pág. 65)

Nunca estou onde estou.
(A cidade Sonhada, 65)

Atônito nada
sempre à espera.

(Nenhuma Nuvem, 67)

Homens perdidos entre lapsos de memória.
(Brasília sob a Neve, 68)

Correndo atrás do sonho que acabou.
(London sweet Londres, 71)

Criatura sem norte,
inventa perfídias,
sonhos e fábulas,
e diante da morte
erige catedrais
onde perde a alma.

(Dia das Caças, pág. 26)

Paredes nada sustentam,
não há imagem no espelho.

(Desconstrução, 102)

Aqui houve uma cidade.
(Desconstrução, 104)

E eis o seu momento mais Hamlet-Marx-Berman:

Há o cosmo, o universo,
e no entanto
todo o concreto se desvanece.

(O Velho Poeta, 107)

Nesse contexto, só a arte salva. Porque os poemas guardam/ o que outras vozes / emudecem. (Aquarela, 87)

Há um momento em que as luzes se apagam
e tudo se ilumina:
as razões incompreensíveis,
o caminho dos acasos,
a ordem do universo,
e os mistérios
impossíveis de enunciar.

(Cenário ao Fim da Tarde, 81)

Daí A luta por um lugar/ no poema.
(Palavras, 74)

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À DERIVA NA CIDADE

As cidades guardam segredos em seus caminhos. As cidades e suas erosões, cicatrizes, feridas, cansaços. As cidades e suas memórias, visões, sombras e clareiras. A cidade e suas artérias, seu sangue, poeira, fragmentos, desejos. Carícias e agressões. Riquezas e misérias. Imagens e miragens.

Grafitti de José Augusto Iowa
Deixar o olhar se perder à deriva nessas cidades que se multiplicam dentro da cidade. No sábado, 17, um grupo de pessoas vai percorrer o centro de Goiânia com o espírito aberto para essa cidade que é de cada um e é de ninguém. Uma cidade inventada por um olhar pessoal. É a Deriva Fotográfica do Bem. O objetivo é descobrir a cidade imaginária de cada um. Vamos nos encontrar no coreto da Praça Cívica, às 8h, para a partir daí recriar em imagens a cidade que se expuser (ou se esconder) aos nossos olhos. 

Na sexta-feira, 16, vamos conversar sobre o que será, o que não será, o que poderá ser essa expedição que espera apenas a surpresa. Participarei de um bate-papo com a arquiteta Marcia Metran e o fotógrafo Helio de Oliveira, quando tentaremos convergir nossas visões pessoais sobre a cidade e tentar compreendê-la sob o olhar da arquitetura, da fotografia e da poesia. Será no Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (UFG), a partir das 20h.  

Vou apresentar aos participantes da Deriva o meu livro Exília, criado a partir do sentimento de desenraizamento que atormenta o artista e o cidadão comum e que representa a tentativa de explicar esse lugar que só existe dentro de cada um de nós, como um refúgio pessoal e utópico. E tentar compreender a poesia como ferramenta para criar espaços mentais e espirituais que nos salvem de um mundo inóspito e devorador. 

A Deriva nasceu em 2008 como disciplina do curso de Arquitetura da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e depois passou a acontecer de maneira informal, sob a coordenação do arquiteto e professor Braúlio Vinícius Ferreira. Os inscritos doam litros de leite para a Missão Pão e Vida, entidade que apoia moradores de rua e dependentes de drogas. As imagens e textos que resultarem dessa experiência serão publicados no site da Deriva

A BABEL DA POESIA


Quando o avião pousou no aeroporto de Lima, no Peru, por volta de meio-dia do dia 3 de julho, tinha início uma fascinante experiência. Eu chegava à cidade para participar do II Festival Internacional de Poesia de Lima, o Fiplima, a convite de seus organizadores, e estava ansioso para saber como se daria o encontro, durante os quatro dias do evento, entre os 114 poetas de 30 países que o evento anunciava. 

A Casa da Literatura Peruana
Realizado pela prefeitura da cidade e pela Associação Fórnix Poesia, o Fiplima contou com o apoio de grande número de empresas e entidades, incluindo a Unesco e a Embaixada do Brasil. Quem manteve a máquina funcionando , resolvendo pequenos e grandes problemas, foi o poeta Renato Sandoval, que contou com uma equipe dedicadíssima e um grande número de jovens voluntários. 

Outro personagem importante foi o próprio público, que prestigiou o evento. O Peru tem uma relação carinhosa com seus escritores, que se manifesta em entidades como a Casa da Literatura Peruana, sediada em edifício majestoso, no centro da capital. Não se faz um festival internacional de poesia em lugar qualquer.  

Fizemos 23 recitais, distribuídos em auditórios de bibliotecas, parques, universidades, centros culturais, em diferentes pontos de uma cidade enorme e caótica. Lima tem clima úmido, onde o tempo é permanentemente nublado e raramente se vê a cor do céu. Para chegar ao local do evento, os poetas escalados, geralmente em número entre sete e nove, eram transportados em vans contratadas pela organização do festival. No interior do carro, que inevitavelmente ficava preso em enormes engarrafamentos, o som era de uma babel, onde se misturavam as mais diversas línguas. 

Nos recitais, cada poeta falava um poema em sua língua original e em seguida um dos organizadores lia uma tradução em espanhol, ouvidas, ambas as versões, por um público atento, curioso e sensível. Havia, entre os participantes, poetas de países tão distintos quanto Suécia, França, Dinamarca, Palestina, Argélia, Armênia, Espanha, Noruega, Sérvia, entre outros, além dos latino-americanos – Argentina, Uruguai, Colômbia, México, Brasil. Alguns desses escritores nem compreendiam o espanhol, o que tornava os recitais ambientes sonoros sem muito sentido para eles, a não ser pela curiosa musicalidade da poesia em línguas estranhas. 

Mesa brasileira
Do Brasil, fomos 10 poetas convidados. Além deste que lhes escreve, lá estavam Affonso Romano de Santanna, Fabrício Marques, Iacyr Anderson Freitas, Sérgio Cohn, Fabrício Corsaletti, Luiz Silva Cuti, Lucila Nogueira, Camila do Valle e Angélica Freitas. O evento coincidiu com a realização da Festa Literária de Paraty (Flip), que excita de tal forma a imprensa cultural brasileira que não se fala de outra coisa. Uma pena, porque o Brasil foi o país convidado de honra desta edição da Fiplima, e creio, sem julgar a minha parte, que nossa poesia estava bem representada. 

Ao lado de mais de 100 poetas, ainda que todos hospedados no mesmo hotel, era impossível aproximar e tomar conhecimento de todos. No entanto, foi riquíssima a experiência de entrar em contato com a poesia de escritores de grande talento. Cada um em seu canto, formados em culturas tão diversas, esses homens e mulheres praticam o ofício de ler o mundo pela linguagem da poesia, que supera fronteiras e os une ao redor das afinidades e diversidades de sua arte.

A poesia carrega o vigor de quem toma da palavra para lutar contra a adversidade, enaltecer a beleza, demonstrar seu estranhamento diante de um mundo caótico ou questionar aparentes certezas. A poesia é uma linguagem mágica, por não se prender aos limites do sentido e estar aberta a todas as possibilidades. É o que os poetas têm em comum, ainda que venham de culturas distintas.

De 4 a 7 de julho, quando se deu o encerramento do festival, ouvi poemas que me surpreenderam pela beleza, profundidade e força. Falados em idiomas familiares ou estranhos, muitos deles permaneceram reverberando na mente e no coração. Ao deixar Lima, eu tinha certeza de que havia enriquecido e aprofundado um pouco mais a minha experiência com a poesia. 

EXÍLIA E A REVOLUÇÃO DOS 20 CENTAVOS


Cheguei a São Paulo na manhã de 17 de junho, segunda-feira. Na semana anterior, milhares de pessoas começaram a lotar as ruas, se manifestando, primeiro, contra o aumento das passagens de ônibus, e depois, em defesa de outras bandeiras. O lançamento de meu sexto livro de poemas, Exília, estava marcado para o dia seguinte, terça. Enquanto eu autografava livros na Casa das Rosas, a avenida Paulista era tomada por manifestantes.  

Casa das Rosas, na av. Paulista
Era o início de uma maratona de duas semanas, que se encerraria na quinta, 27, em Brasília. Ao longo desse trajeto, os protestos caminharam ao meu lado. No dia 20, quinta, dia do lançamento em Passos, minha terra, soube que lá também o povo iria às ruas – a primeira manifestação estava marcada para a semana seguinte. Era um dos assuntos do público que me prestigiou na Livraria Mar de Minas. Em Belo Horizonte, na manhã do sábado, 22, enquanto eu conversava sobre Exília na Livraria Mineiriana, na Savassi, manifestantes se reuniam no centro. Na quinta seguinte, 27, lancei finalmente em Brasília, depois de ver pela TV alguns sinais de que o governo pensava em governar.  

Escrever um livro de poemas é sempre uma aventura. Durante três anos, pensei, refleti, observei e deixei fluir emoções e questionamentos, até chegar ao volume que tomou forma na edição da Dobra Editorial. Sair às ruas para protestar também é uma aventura, e, assim como o poeta, o manifestante tem emoção e indagações à flor da pele. Meu livro tem como tema o sentimento da falta de lugar no mundo, que incomoda o cidadão que observa seu ambiente e se sente desenraizado e acuado. Os jovens nas ruas reivindicam um melhor lugar para viver. 

As manifestações aconteciam todos os dias. Após o lançamento em São Paulo, recebi mensagens de amigos e escritores, que se desculpavam por não terem conseguido chegar ao local. Outros, que não se explicaram, não precisaram fazê-lo: eu sabia que para muita gente era mais importante estar nas ruas protestando do que no lançamento de um livro de poemas. Também houve os que chegaram já no fim do evento, ou não chegaram a tempo de pegar a Casa das Rosas aberta. E houve os que driblaram passeatas e engarrafamentos para me encontrar na Casa das Rosas. 

Quando se planeja o lançamento de um livro, para dois meses depois, deve-se contar com o imprevisto, embora nada se possa fazer contra ele. Neste caso, o imprevisto foi a enorme energia que levou centenas de milhares de pessoas às ruas, diariamente, em dezenas de cidades. As ausências, em qualquer tipo de evento, e em particular em lançamentos de livros de poesia, são inevitáveis e previsíveis. Por isso, ao invés de lamentá-las, prefiro enaltecer as presenças. E recordar encontros, reencontros e boas, ainda que rápidas, conversas.  

“Não por ser gentil, / mas ardiloso, / meu país me acolhe nos braços / e expulsa meus sonhos / entre um e outro cansaço / (por mais abertos / os horizontes / mais faltam espaços).” Uma estrofe do poema Infinitos limites, página 59 de Exília, me descreve em meio à confusão. Mas estou cercado de pessoas queridas. Amigos novos, amigos antigos, amigos de sempre. Penso em cada um e fico feliz. Exília chega às mãos de pessoas importantes para mim. A guerra acontece lá fora. A guerra sempre acontece. Mas, se esse deserto inóspito me acolhe com mãos ásperas, a presença dos amigos é a marca que permanece. 

A CAMINHO DE EXÍLIA

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Esta é a capa de meu novo livro de poemas, Exília, um belo trabalho de Regina Kashihara. Edição da Dobra Literatura, o livro terá lançamentos a partir da próxima semana. 

Na terça-feira, 18 de junho, vamos lançá-lo em São Paulo, na Casa das Rosas. Na quinta-feira, 20, em Passos, na Livraria Mar de Minas. E no sábado, 22, em Belo Horizonte, na Livraria Mineiriana. Volto a Brasília para lançá-lo no restaurante Carpe Diem na quinta, 27 de junho. 

Mais detalhes desses eventos - endereços, telefones, horários - estão disponíveis na coluna à direita. Informações sobre o livro podem ser lidas no menu superior deste blog, na aba "Exília". 

Contatos com o autor: am.versoseprosas@gmail.com

Outras informações: Alexandre Marino Versos e Prosas, no Facebook. 

[crônica] O RELÓGIO DE MEU AVÔ



Meu avô morreu em janeiro de 1975, aos 85 anos. Eu, aos 18, não entendia bem a morte e não imaginava que, quanto mais se vive, mais ela se torna real e presente. Naquele dia eu estava em Belo Horizonte, fazendo as últimas provas do curso colegial. Morava numa república no 22º andar do edifício JK. No final da tarde, bateram à porta. Era um amigo, Helder Piantino, conterrâneo que morava alguns andares abaixo. Nosso apartamento não tinha telefone. Sempre que ele batia à minha porta, eu sentia certo desconforto. Naquele dia foi pior, porque havia deixado meu avô doente. Minha mãe pedia que eu ligasse. 

No domingo anterior, pouco antes que eu saísse em direção à rodoviária de Passos, minha mãe me puxou para um canto, olhou-me nos olhos e disse: “Vá se despedir de seu avô, pode ser que você não o veja mais.” Lembrei-me dessas palavras quando tomei o elevador ao lado do Helder, para lhe telefonar. 

Era uma terça-feira. Havia um ônibus para Passos à meia-noite. Dormi pouco durante a viagem. Pensava nas histórias sobre tempos antigos de Passos, que meu avô gostava de contar. À noite, sentava-se à mesa da sala do sobrado; minha avó, minha mãe e minhas tias ao redor e eu no colo de alguma delas, para ouvi-lo falar. 

O velho Chico Gomes, como era conhecido, teve inúmeras profissões. Quando bem jovem foi ferrador de cavalos. Nessa época, um fabricante de cigarros oferecia prêmios em troca dos selos que lacravam os maços. Meu avô, que foi fumante a vida inteira, conseguiu juntar mil selos e ganhou um relógio de parede. Quando contava isso, apontava orgulhosamente para o relógio às suas costas, imponente na parede da sala. Badalava de meia em meia hora, e duas vezes por semana meu avô subia numa cadeira para lhe dar corda. 

Desde menino, eu gostava de ouvir os badalos do relógio, que permaneceu naquela mesma parede por mais tempo que meu próprio avô dentro do sobrado. Pelo processo natural da vida, um homem nasce, amadurece, envelhece e morre, e Chico Gomes morreu de velho. De certa forma, a casa que ele construiu passou pelo mesmo processo. Consta que ficou pronta antes de 1910. Em dezembro de 2007, foi fechada por falta de moradores. 

Cheguei a Passos ao amanhecer. O ônibus da Transilva estacionou na velha rodoviária da Praça do Rosário. Atravessei a rua e desci a Antônio Carlos. Seria mais rápido pela Deputado Lourenço de Andrade, mas fiz meu caminho habitual, passando pela Praça da Matriz, rua Santo Antônio e virando à direita na Travessa Inconfidentes. Na esquina, parei por alguns momentos. Depois, virei à esquerda e cheguei ao velho sobrado. Na época, os velórios aconteciam nas próprias residências, e havia muita gente na calçada. 

Subi, sentindo cada degrau, e da sala de visitas tive a última visão de meu avô. A porta de vaivém que dava acesso ao interior da casa estava aberta. Haviam retirado a mesa da sala de jantar e a cômoda que ficava junto à parede do fundo. À esquerda de meu avô, o relógio parecia observar a cena: o velho Chico Gomes cercado de parentes, vizinhos, amigos da família, indiferente a todos. 

O relógio marcava quatro horas e alguns minutos. O horário exato da morte de meu avô. Quando ele exalou o último suspiro, o relógio parou junto. Em respeito à memória do velho, ou à estreita relação entre eles, ninguém ousou mexer no relógio por algum tempo. Mas depois o puseram para funcionar de novo, como se assim pudessem trazer meu avô de volta. 

[poema] PELO DIA NACIONAL DA POESIA

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Comemorando o Dia Nacional da Poesia, 14 de março. Uma data para nos lembrar que a poesia está presente em todas as horas e todos os dias.