Suzanne conduz você a seu recanto junto ao rio. Ouvindo os barcos que partem, você quer passar a noite ao lado dela. Sabe que ela está quase louca, mas é por isso que você quer ficar lá. Quer viajar com ela, viajar às cegas, e sabe que ela confiará em você, pois você tocou seu corpo perfeito com o pensamento. Eis alguns trechos da primeira canção de Leonard Cohen que o mundo ouviu, Suzanne, que traz algumas das principais características da obra do compositor e poeta canadense que morreu em 7 de novembro aos 82 anos. Personagens femininas ora reais, ora mitológicas; inspiração, citação e recriação de personagens e cenas bíblicas, históricas ou lendárias; erotismo às vezes velado, às vezes explícito; uma espiritualidade incontida, que parece filtrar o olhar de Cohen sobre o mundo e sobre as coisas, por mais profano e vulgar que ele às vezes tente parecer. Mas a poesia elaborada de Leonard Cohen é pura transcendência, um daqueles sinais emitidos pelos grandes artistas de que a humanidade já é capaz de galgar um degrau acima da barbárie e da incivilidade.
Ao morrer, com a mesma discrição que adotou em importantes momentos de sua vida, Leonard Cohen deixou uma coleção de canções e poemas que guardam segredos ainda a descobrir, palavras a compreender, belezas a eclodir lentamente. O artista arredio dos primeiros anos, compositor meio a contragosto, se transformou aos poucos em personagem instigante, ansioso por compreender o ser humano de seu tempo, dotado de olhar sempre atento para a História, dono de uma elegância vinda desde o berço e incontestável carisma. Seu primeiro disco, Songs of Leonard Cohen, lançado em 1968, já com a idade de um veterano da música – 34 anos – chegou depois de quatro livros de poemas e dois romances, o que lhe garantia considerável cacife para construir belas letras, numa época em que a música pop e o rock portavam a voz da juventude.
Nascido em Montreal, no Canadá, de tradicional família judia, Leonard foi educado para ser um homem de negócios de sucesso, mas ele se encantou com a poesia. É desses desvios que certas criaturas experimentam e jamais voltam a ser as mesmas. Por volta de 15 anos conheceu a obra do poeta espanhol Federico Garcia Lorca, morto na guerra civil em 1936, e se encantou. Aos 21, publicou seu primeiro livro de poemas, Let us compare mythologies, bem recebido pela crítica, que destacou a maturidade de seus versos e o domínio da linguagem.
O livro já trazia elementos comuns da poesia de Cohen. A influência da cultura judaica, muito presente em toda a sua formação, não só pela educação que recebeu como também pela história da família e o ambiente comunitário onde cresceu, e uma certa perplexidade diante do inexorável. O poema Lovers remete ao Holocausto, ao descrever o amor de um casal num cenário em ruínas e entre as chamas de um forno. “Quando as chamas se erguiam/ ele tentou beijar seus seios ardentes/ enquanto ela queimava no fogo”. Outro poema, Rites, descreve a morte do pai, Nathan Cohen, ao lado da família e em ambiente tipicamente judeu.
NOVE ANOS – A perda do pai, quando Leonard tinha 9 anos, guarda uma relação simbólica com sua poesia. Após a cerimônia do velório, ele pegou no armário uma gravata do pai, e nela escondeu um pequeno pedaço de papel, onde havia escrito algo. Em seguida, a enterrou no jardim de casa, sob a neve. Ao longo dos anos escavou o quintal por várias vezes, na esperança de encontrar o bilhete. Foi a primeira coisa que escreveu na vida, e dizia que sua poesia era a procura daquelas palavras, de que não conseguia se lembrar.
Nove anos também era a idade do garoto Isaac, da história bíblica sobre o sacrifício de Abraão, a quem Deus pediu o sacrifício do filho. É recontada por Cohen na canção Story of Isaac. “A porta abriu devagar/ e meu pai entrou/ eu tinha nove anos/ seus olhos brilhavam/ e sua voz era muito fria./ Disse, tive uma visão/ e você sabe, sou forte e santo/ tenho que fazer o que me mandaram./ (...)/ Subimos a montanha/ eu, correndo, ele a caminhar/ levando o machado de ouro./ (...) Vocês que se erguem sobre as crianças/ com suas lâminas afiadas e sangrentas/ não estiveram lá antes/ quando me deitei sobre a montanha/ e a mão de meu pai tremia/ com a beleza da palavra.”
Esta canção está no segundo disco de Leonard Cohen, Songs from a room, em que gravou algumas preciosidades de sua carreira, como Bird on the wire. Outra canção de grande beleza incluída no segundo álbum é Seems so long ago, Nancy, com que Leonard homenageia uma jovem de Montreal, que se matou quando seu filho ilegítimo foi tomado dela. “Parece que faz tanto tempo/ nenhum de nós era forte/ Nancy usava meias verdes/ e dormiu com todo mundo/ (...) /Acho que se apaixonou por nós/ Em mil novecentos e sessenta e um/ (...)/ Parece tanto tempo/ um quarenta e cinco contra a cabeça/ um telefone fora do gancho/ (...)/ Na solidão da noite/ quando você está frio e sonolento/ pode ouvi-la falar livremente/ que está feliz porque você veio”. No verso final, no original em inglês, Cohen faz um trocadilho, já que “she´s happy that you´ve come” pode se referir tanto à chegada de uma pessoa quanto ao orgasmo no ato sexual.
A julgar pela história que o poema conta, se verdadeira em parte ou no todo, pode-se considerar que Leonard teria feito sexo com a jovem, e assim a teria homenageado para expiar possível sentimento de culpa? Mulheres que passaram pela sua vida, como Suzanne Verdal, Marianne Ilen e a cantora Janis Joplin se tornaram personagens das canções. Marianne, a bela norueguesa que Leonard abordou num mercado da ilha de Hidra, na Grécia, em 1969, e morreu em julho deste ano, foi talvez a maior paixão de sua vida, ainda que as paixões tenham sido sempre efêmeras. Ela é a personagem de So long, Marianne, composta quando viviam juntos e gravada no primeiro álbum de Cohen. “Adeus, Marianne/ é tempo de começarmos/ a rir, a chorar, a chorar, a rir/ sobre tudo isso outra vez/ Sabe que amo viver com você/ mas você me faz esquecer de tanta coisa/ eu me esqueço de rezar pelos anjos/ e os anjos se esquecem de rezar por nós”.
Janis Joplin não tem seu nome citado, mas é de conhecimento público que ela é a mulher de Chelsea Hotel #2, uma das mais populares – e belas – canções de Cohen. Está em seu quarto álbum, New skin for the old ceremony, e começa com a descrição de uma cena de sexo: “Eu me lembro de você no Chelsea Hotel/ falava com contundência e doçura/ você me chupava na cama desfeita/ enquanto as limusines esperavam na rua.” E prossegue: “Você se foi, e nunca a ouvi dizer/ preciso de você, não preciso de você/ e toda essa conversa// Eu me lembro de você no Chelsea Hotel/ você era famosa, seu coração uma lenda/ disse-me que preferia homens bonitos/ mas para mim abriria uma exceção”.
PERSONA – Leonard Cohen construiu uma persona que divide espaço com ele próprio no imaginário de seus fãs. Em seus poemas é visível a presença desse personagem sombrio e atormentado, mas generoso e solidário, inconformado com as injustiças, que parece indicar o amor como o remédio contra a desesperança. Leonard está sempre lá, no cerne de suas canções, e talvez isso o torne tão próximo. Essa presença é marcante especialmente em uma canção, Famous blue raincoat, que deixa no ar uma pergunta: que história teria motivado esse poema em forma de carta, em que chama alguém de “meu irmão, meu assassino” e diz que o perdoa? Na gravação original, do terceiro álbum, Songs of love and hate, a canção-carta termina com a assinatura “L. Cohen”.
Rica em personagens femininas, a obra de Leonard Cohen tem ainda mulheres lendárias ou bíblicas, como Betsabá, amante do Rei Davi, e Dalila, esposa de Sansão, ambas da Bíblia. Elas aparecem de passagem em sua mais conhecida canção, Hallelujah, lançada no sétimo álbum, Various positions, e gravada por mais de 500 intérpretes em todo o mundo. “Ouvi dizer sobre um acorde secreto/ que Davi tocava e agradava a Deus/ mas você não se importa com música, não é?/ ela vai assim/ a quarta, a quinta/ a menor cai, a maior sobe/ o rei confuso cantando aleluia// sua fé era forte, mas precisava de provas/ você a viu banhando-se no terraço/ sua beleza e a luz da lua derrubaram você/ ela o amarrou na cadeira da cozinha/ quebrou seu trono/ cortou seu cabelo/ e dos seus lábios arrancou um aleluia/.”
Joana d´Arc é outra personagem mítica que ganha vida na música de Cohen, numa versão poética para a história da guerreira francesa, declarada herege por um tribunal da Igreja em 1431 e condenada à fogueira, depois de lutar pela França contra as tropas inglesas. No poema de Cohen, o fogo é o macho sedutor, a quem ela se entrega como se se entregasse a um amor. Joan of Arc foi originalmente gravada em Songs of love and hate.
Reverente aos grandes poetas, Leonard Cohen se inspira em um poema do grego Konstantinos Kavafis, O deus abandona Antônio, para escrever uma de suas obras-primas, Alexandra leaving. Kavafis parte de uma cena lendária, a batalha entre os exércitos de Otávio Augusto e de Marco Antônio e Cleópatra, vencida pelo primeiro, para promover uma reflexão existencial sobre as perdas e os sonhos frustrados. Já Leonard toma o nome da cidade de Alexandria, citada por Kavafis, para nomear a musa de seu poema, Alexandra, e refletir sobre a perda do amor. É indispensável destacar a belíssima interpretação de Sharon Robinson no álbum Leonard Cohen live in Dublin, composto de três CDs e um DVD, gravado já no final da última turnê de Cohen, em setembro de 2013.
BUDISMO – O poema que deu origem a essa canção, assim como vários outros que compõem seu décimo álbum, Ten new songs, faz parte do Book of longing, livro lançado por Cohen após sair do monastério budista Mont Baldy, nos arredores de Los Angeles, nos Estados Unidos, onde viveu isolado durante cinco anos. O CD é compartilhado com Sharon Robinson, que compôs as melodias e fez os arranjos. Sharon também o acompanhou, como backing vocal, nas suas duas últimas turnês, entre 2008 e 2013.
Antes de se isolar no monastério, Cohen havia lançado I´m your man, em 1988, e, quatro anos depois, The future, um álbum mais político, que parecia trazer à tona sua face mais atormentada. Na faixa título ele cita o muro de Berlim, Hiroshima e tragédias de nosso tempo para dizer: “Eu vi o futuro, ele é assassinato”. Desta canção também faz parte um belo verso de Cohen: “Vi nações crescendo e caindo/ Ouvi suas histórias, ouvi todas elas/ mas o amor é o único mecanismo de sobrevivência”. Em Anthem, ele diz: “Toque os sinos que ainda podem tocar/ Esqueça as oferendas perfeitas/ em tudo há uma fissura/ por onde a luz se aventura” (em tradução livre).
A este se seguiu um ano de turnê, e o Canadá lhe prestou homenagens e prêmios por seus discos e livros. Mas Cohen arrumou uma mochila e foi comemorar seu sexagésimo aniversário, em setembro de 1994, no mosteiro de Mont Baldy. De lá só saiu em 1999, para a Índia, onde foi estudar com o mestre Ramesh Balsekar, com quem passou pouco menos de um ano. Entre esses estudos, meditação zen e rituais judaicos, Cohen prosseguia sua busca interior e tentava afastar suas tendências depressivas, mas o que parece tê-lo curado de fato foi a música e a poesia.
Em sua última década de vida, Cohen se dedicou à criação. A partir de 2004, quando completou 70 anos, ele gravou quatro álbuns de estúdio, com canções inéditas – Dear heather (2004), Old ideas (2012), Popular problems (2014) e You want it darker (2016) – e mergulhou de cabeça em longas turnês, que promoveram seu reencontro com um público cada vez maior e mais reverente.
Já no disco de 2004 ele refletia sobre sua relação com as mulheres: “Por causa de algumas canções/ em que falo de seus mistérios/ mulheres têm sido muito gentis/ com minha idade avançada// criam um lugar secreto/ em suas vidas agitadas/ e me levam para lá/ desnudam-se de várias formas/ e dizem: ‘olhe para mim, Leonard/ olhe para mim uma última vez’”.
DESPEDIDA – Seu próprio nome volta a entrar na letra de Going home, que abre o álbum Old ideas: “Amo falar com Leonard/ ele é um esportista e um pastor de ovelhas/ é um bastardo preguiçoso/ que vive dentro de um terno”. Quando lançou esse disco, Cohen estava encerrando sua última turnê, em que parecia, finalmente, sereno e em paz consigo mesmo. Nas casas de espetáculos sempre superlotadas, com milhares de fãs reverentes, ele parecia dirigir-se a um grupo de amigos próximos que o rodeavam, como nas primeiras vezes em que cantou em ambientes universitários no Canadá ou Estados Unidos.
Seu último álbum, You want it darker, é claramente uma despedida, embora seus fãs tenham resistido a vê-lo dessa forma ao longo dos 17 dias que separaram seu lançamento e a morte do compositor. O CD foi para as lojas no dia 21 de outubro de 2016, exatamente um mês depois de Cohen completar 82 anos. Em duas canções, Cohen repete o verso “estou fora do jogo”. Na faixa título, que abre o disco, aparece o coro da Congregação Shaar Hashomayim, da sinagoga que Cohen frequentava na infância, e seu vocalista, Gideon Zelemayer. Assim Cohen fechava o ciclo, o que não o impediu de cantar também uma de suas belas canções de amor: “Se o sol perdesse a luz/ e vivêssemos uma noite sem fim/ e nada mais pudéssemos sentir/ seria assim que o mundo me pareceria/ se eu não tivesse seu amor/ para torná-lo real”.
Dos seus primeiros anos em Montreal até sua morte em Los Angeles, da solidão dos nove anos até os últimos momentos ao lado do filho, Adam Cohen, que produziu seu último álbum, Leonard Cohen foi o que ele próprio descreveu naquela que considerava sua mais simbólica canção, Bird on the wire, criada no início dos anos 1970, quando vivia na ilha grega de Hidra de forma quase edênica, entre o sol, o mar, as canções, a poesia, as mulheres, os amigos. “Como um pássaro no fio/ como um bêbado numa cantoria à meia-noite/ eu vou tentando ao meu jeito ser livre”. A poesia e a música fizeram de Leonard Cohen um homem livre. Às vezes como um pássaro, às vezes embriagado pela arte com que engrandeceu o mundo.
Artigo publicado no jornal Estado de Minas, 16/12/2016
Foto: Dominique Issermann
Foto: Dominique Issermann
Leia poemas e canções de Cohen na postagem anterior
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