HIATOS E DITONGOS
Impossível ler completamente um livro de poemas. Embora tenha ido da primeira à última página de Hiatos (Patuá Editora, São Paulo, 2017) do Alexandre Marino, relido do último ao primeiro poema, não terei lido o livro todo. Mas, possivelmente, fui lido por ele.
São os poemas que nos declamam, nos escandem a alma da pele aos ossos, dão ritmo e rimam os sentimentos que nos alinham em versos de riso e lágrimas, nos decifram e nos definem em versos brancos.
Tomar nas mãos uma obra como Hiatos, é sentar-se na antessala dessa ressonância poética, dessa tomografia lírica, do ecocardiograma trágico – Ecocardiografia, aliás, é título do primeiro poema do volume, que fala de nosso próprio coração exposto: “ali se guarda toda a tristeza do mundo/ labirinto onde o homem feliz se esconde”.
Hiatos, esses momentos de estupor do poeta, diante de cenas de um mundo visto de forma desesperançada, mesmo que com ternura de despedida, melancolia. Marino já tinha demonstrado essa perplexidade, essa impotência diante da cena mundana em obra anterior (Exília, Dobra Editorial, SP, 2013) como no poema O Velho Poeta, pessoa que “divaga sobre refazer o mundo/ reordenar a história” mas “cansado de caminhos/quer só a viagem”. A viagem é esse hiato entre o partir e o chegar, origem e destino, entre passado e futuro, onde flutua a consciência do indivíduo que recolhe provas da própria existência, coleciona trivialidade que deem sentido à vida, pequenos objetos capazes de fazer a amálgama entre uma ponta e outra.
Já na sua obra Arqueolhar (L.G.E. Editora, Brasília, 2005) vagava Marino nessa arqueologia do tempo presente, garimpando seu passado. Lá, no poema Paisagem Doméstica, ele diz que “ninguém sabe a história inteira/ evocam-se vazios invulneráveis/ o tempo é feito de destroços”. Os vazios, os hiatos, os momentos de contemplação presente, que não podem ser transpassados. E sim, ninguém sabe a história inteira, ninguém lê um livro de poemas completamente, ainda que o esgote da primeira à última página. Nós é que vamos sendo lidos aos poucos, nesse hiato entre abrir o livro e fechar nossos olhos.
Procurei em minha confusoteca – essa biblioteca ainda de pernas pro ar – o livro de estreia do Alexandre Marino. Livros gostam de passear, parecem buscar conversas uns com os outros. Mas encontrei Os Operários da Palavra (Batanguera, Belo Horizonte, 1979) que para mim, ou para nós que conhecemos este poeta desde sua gênese, é um símbolo, um troféu que trago ‘daqueles tempos’, quem sabe nossa origem literária, de onde nos lançamos como protótipos de uma esperança adolescente. Tínhamos bandeiras, a que persiste talvez seja a defesa da liberdade de expressão. Leiam nesse livro Ó putas do meu Brasil – as putas pululam persistentes, o Brasil persistentemente se prostitui, só nós não nos vendemos, mas entregamos alguns sonhos para adoção de gerações novas.
Em 1966, quando tinha 11 anos, cheguei a Passos e fui logo conhecendo o Alexandre Marino. Meu avô materno, Geraldo Magela, assim como o pai do Alexandre, Zé Marino, eram telegrafistas e morsemente se conheciam. Tivemos uma infância compartilhada – jogos de botão, tombos de bicicleta, leitura de gibis (o que na casa dele era permitido, na minha não). Fomos cineastas, façanha que ele conta em Arqueolhar, no poema Heróis do Cinema, a mim dedicado.
Posso dizer que formamos não só uma dupla, mas um ditongo. Amadurecemos e partilhamos literariamente nossos hiatos.
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